domingo, 28 de novembro de 2010

Cicatrizes

A maioria das pessoas não gostam de ter cicatrizes e sentem vergonhas em mostrá-las. Escondem sob roupas, maquiagens ou tatuagens.

Alguns pontos da síntese inflamam, a pele as vezes não convalesce como o esperado, a linha reta pode entortar e a cicatriz toma uma forma indefinida. Ou ainda, num processo biológico, um caso de quelóide pode agravar ainda mais a anatomia de um processo cicatricial.

Minhas cicatrizes são grandes e irregulares, uma em cada perna. Estão longe de serem cicatrizes delicadas. São agressivas aos olhos alheios. Causam incômodo e fazem as pessoas terem muita curiosidade, não conseguirem se segurar e acabar perguntando o que eu fiz para ter aquelas marcas enormes nas minhas pernas. Quando conto que são advindas de cirurgias para correção de um problema nos joelhos, sempre ouço "Poxa, mas tão nova". Sim, bem nova. Antes mesmo dos 30 anos que é para não ter problemas de desmineralização óssea ou antes mesmo de me ocupar com qualquer outra coisa que não seja a minha vida e a minha saúde. E quando dizem para eu procurar um cirurgião plástico para "ajeitar o problema" eu agradeço a sugestão e digo que estou bem do jeito que estou.

Eu amo as minhas cicatrizes. Elas são bem mais do que simples incisões feitas por um bisturi e depois suturadas. Há muito mais por trás delas. Há uma vida toda que foi intensamente vivida e bem aproveitada. Tem todos os planos que fiz e desfiz por inúmeras razões. Tem todas as experiências que acumulei durante minha vida toda. Tem sonhos, pesadelos, sede e fome de aspirações. Tem viagens realizadas, pessoas que conheci e sempre lembrarei e também aquelas que me tomam um esforço diário para tentar esquecê-las. Tem amores e ódios. Amizades, paixões, frustrações e orgulhos. Tem acontecimentos engraçados, tristes, tensos e até bizarros. Tem os idiomas que eu falo, o conhecimento que adquiri, as técnicas de defesa que aprendi ao lidar com todo tipo de gente. Tem sangue, choro, garra, esperança, suor e superação. Tem esforço - e algumas vezes também - cansaço. Mas se tem uma coisa que não existe em nenhum dos 33 pontos das suturas é desistência. Com toda dificuldade, com toda dor, com todo o ferimento, a persistência foi simplesmente a linha que sintetizou a pele novamente.

Sou uma pessoa ímpar. Tenho plena consciência disso. E diferente das pessoas que se envergonham, eu tenho muito, mas muito orgulho mesmo, das minhas cicatrizes que não são nada perfeitinhas e delicadas, bem pelo contrário, são tortas. São hardcore. São punk. São minhas. É a minha história que elas escreveram e também, claro, reescreveram.
Sempre que posso uso shorts. Tenho comprado vestidos cada vez mais curtos. Quero que as pessoas vejam minhas cicatrizes e se perguntem como eu posso ter aguentado a dor que elas causaram.
Como aguentei, nem sei. Mas sei que aguentei e ponto. Sou mais forte do que supunha. E aprendi mais coisas do que saber como fazer a assepsia de uma sutura.

Já pensei em ampliar uma foto delas e colocar como um quadro no meu quarto para expressar todo o meu afeto por essas marcas que aqui existem e que são muito mais do que sinais de que tive meus fêmures fraturados em sacrifício para consertar minha estrutura óssea. Quero colocar como wallpaper no meu celular, nos meus computadores ou fazer uma estampa de camisa com a foto delas. Como se fossem troféus de uma importantíssima competição entre eu e mim mesma em que eu fui a campeã. Apenas porque elas mostram que tive dificuldades, limitações, provações e passei por traumas físicos e psicológicos mas me recuperei. Que a dor diminuiu, problemas foram consertados e embora sequelas tenham ficado, mantive a cabeça erguida, reuni coragem e encarei de frente uma coisa que várias outras pessoas protelam para fazer e se submetem a uma vida de analgésicos para disfarçar a dor.

Uma cicatriz existe pra mostrar que um sacrifício foi vencido com sucesso pois caso contrário, no lugar da cicatriz ainda existiria uma enorme ferida aberta causando uma dor contínua e deveras incômoda.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Quanto mais eu preciso lembrar até que eu consiga esquecer?

Sou cinéfila e sempre fui uma pessoa solitária. O combo filha única+antissocial+nerdice garantiu isso. Então a maior parte do meu tempo livre eu aproveitava pra ler e pra assistir filmes. São coisas que gosto e que de certa forma me fazem a companhia física da qual eu não disponho. Eu acho que eu me acostumei a ser só. Tanto é que quando eu arranjo uma companhia, se ela fica muito presente, os pólos se invertem e de alguma forma o universo conspira, ou talvez eu me auto sabote e aí volto a ser sozinha novamente. Namoros enchem o saco, terapeutas enchem o saco, amizades enchem o saco. Qualquer pessoa que se atreva a passar a linha de segurança máxima da minha privacidade, enche o saco.

E aí eu corro e me escondo num lugar da minha mente onde só eu tenho acesso. Fico toda encolhidinha dentro de uma caixa de sentimentos. Eu sempre fui assim. Poucos amigos, muitos segredos quando se tratava dos meus sentimentos, muitos sonhos não compartilhados, muitas opiniões escondidas. Muitos gritos abafados. Nenhuma lágrima de medo na frente de ninguém. Se tem um sentimento que eu realmente escondo é o meu medo. Tenho medos incontáveis. Fundamentados nas mais diversas razões. Mas sempre finjo uma pose de durona e não deixo ninguém saber deles. Talvez seja esse meu maior problema nas terapias desde criança. Eu não conto os meus medos. Meus traumas me causam medo. E eu não falo dos meus traumas.
Freud ensina que nosso aparelho psíquico suprime todas as experiências que nos causam dor e o consequente abalo de nossa integridade psicológica. Nossa mente cria mecanismos de defesa que nos retiram da realidade dolorosa em que nos encontramos. Devo ter traumas escondidos na minha mente. Coisas que foram involuntariamente enviadas ao meu inconsciente. No entanto, ainda me restam traumas que eu gostaria que tivessem tido o mesmo destino. A mente é vasta e foge de qualquer entendimento humano. Desde os bilhões de neurônios aos milhares de processos cognitivos. Então por que somos capazes de esquecer certas coisas e em contrapartida precisamos nos lembrar constamente de outras?
Certamente que tenho problema de memória. E quando digo problema de memória não é porque ela está falhando e me fazendo esquecer as coisas. Não. Muito pelo contrário, o problema da minha memória é que ela é uma garota muito sapeca e fica me fazendo lembrar o tempo todo daquilo que eu preciso esquecer. Ou que pelo menos me obriguei a esquecer.

Dia desses acatei a indicação de um amigo e assisti o filme "O brilho eterno de uma mente sem lembranças" e comecei a refletir sobre ele. Quantas vezes eu não quis a melhor solução pra esse meu problema de memória... E a solução que o filme apresenta é mais fácil, mais prática e mais confortável.
Depois que uma relação termina, há dor para as duas partes. No entanto, uma sempre sente mais que a outra. Uma parte supera e segue em frente. A outra parte que fica com todo o sentimento acumulado esperando pra ser gasto finca o pé no terreno do abandono e se afunda num processo sadomasoquista sentimental. A dor sempre vem acompanhada de vários estágios. Desde a negação até a barganha. Cada pessoa responde de uma forma, mas algo é sempre recorrente: A cara de idiota na frente do espelho, em meios aos vestígios do escape – geralmente alimentício, alcoólico ou qualquer forma bem pouco saudável – as lágrimas e o desleixo estético, se perguntando “Porquê?”
Eu juro que na hora em que a saudade sufoca, não cabe mais dentro de mim e resolve escorrer pelos olhos é quando eu mais queria poder deletar algumas coisas do sistema operacional da minha cabeça. É uma lixeira que nunca se esvazia e onde não existe obediência ao comando shift+del.
Queria eu poder enfiar numa caixa todos os objetos que me remetem à lembrança desse período, seus presentes e todos os objetos que me trazem suas lembranças à tona, dormir algumas horas e quando acordasse seria como se a sua presença na minha vida nunca tivesse existido. Como se nada tivesse acontecido.

Eu não teria me atrasado pra aula e não teria corrido pra subir por aquela escada naquele dia, nós não teríamos nos esbarrado, eu não faria amizade com nenhum de seus amigos, eu não teria lhe dado meu e-mail no laboratório pra gente conversar melhor, não teria contado nada dos meus medos, meus segredos ou meus sonhos. Nós não teríamos feito amizade. Não teria segurado sua mão nem teria sentido seu abraço enquanto meu pai estava à beira da morte. Eu nem teria aceitado sua presença nessa ocasião e muito menos teria chorado no seu colo. Eu não teria ninguém pra chamar de minha pessoa, ninguém pra rir junto das coisas que só eu acho graça. Eu não teria feito a viagem que colocou tudo a perder só porque eu achava que relações não funcionam à distância. Eu não teria sentido ciúmes nem teria me sentido ameaçada por uma pessoa que tem mais sorte do que eu por estar em sua companhia todos os dias. Não teria me cansado de ser só e implorado por sua companhia. Eu não teria criado um mundo só nosso, com costumes só nossos, onde éramos figuras heróicas e onde nos compreendíamos de forma completa reciprocamente e onde eu queria lhe salvar de todos os problemas do mundo só pra lhe fazer feliz. Eu jamais, teria tido alguém pra contar sobre os meus traumas, os meus medos e tudo aquilo que me incomodava. Não teria permitido que conhecesse o meu lado que eu nunca havia mostrado pra ninguém.
Eu não teria sido feliz com alguém por 3 anos sem precisar fingir ser quem eu não sou. Nada disso teria acontecido. Mas ainda assim, aceitaria apagar seus vestígios da minha memória pois apesar da importância das lembranças felizes esquecer é preciso depois do fim, já que tudo se torna tão dolorido.

E tudo que eu queria agora era esquecer que cada vez que penso em nós, sinto o pesar de toda uma vida que poderia ter sido e acabou não sendo.
Acho mesmo que Sou apenas uma garota complicada tentando encontrar paz de espírito. Então, por favor, em um dia frio venha correr numa linda praia comigo e me diga...

Tudo bem. Não há nada em você que eu não goste.




sábado, 18 de setembro de 2010

A insônia, o gorila e a menina pensante.

Dormi a uma hora, acordei ás quatro da manhã e perdi o sono. Enrolei na cama, virei pra um lado, virei pro outro, diminuí a temperatura do ar condicionado, percorri todos os canais da tv a cabo, desliguei a tv, tentei contar carneiros, porcos, elefantes, zebras, girafas e até bichos-preguiça que quem sabe demorando a contar o sono voltasse a habitar minha pessoa. Mas não tivemos acordo e ele resolveu se mandar pro Acre.
Tentei fechar os olhinhos e disse a mim mesma: "Mim mesma, você não vai fazer isso. Não pense. Não seja petulante. Vai dormir. Agora! Valendo!"
Mas lá ao longe, atravessando o Rio Guamá a fortes remadas, eles vinham. Rompendo o céu paraense, passando todos os sinais vermelhos, se valendo de que a essa hora não tem trânsito nenhum, acelerando e furando todos os sinais vermelhos, eles vinham. Dobraram a esquina da minha alameda com a velocidade de avião, se espreitaram pela porta da sala, derrubaram a porta de meu quarto, se esgueirando por entre os móveis e esparramaram-se sobre a cama ao meu lado. Pronto, comecei a pensar. Droga.
Aí todo esforço foi por água abaixo e de repente os pensamentos mais diversos tomaram-me de assalto.
E sabe-se lá porquê, além do pensamento habitual e recorrente de uma determinada pessoa que ainda é uma lacuna em minha vida, lembrei que no depósito de casa tem uns pares de caixas onde estão guardadas lembranças da minha infância. Algumas roupas e sapatos que minha mãe guardou, uns livros e muitos brinquedos. Já doei uma grande parte, mas alguns ficaram porque tem histórias especiais.
Brinquedos que herdei, que ganhei de pessoas que já viraram estrelinha, brinquedos que economizei mesada o ano todo pra comprar, coisas que comprei em viagens. Tudo lembranças. Boas lembranças. Cogitei a possibilidade de talvez escolher uns poucos e doar o resto. Assim, limpo espaço em casa e proporciono a diversão de algumas crianças.
Lembrei que há uma caixa só de pelúcias que tem uma lembrança especíalissima. Foram conquistadas numa época boa.
Quem tem lá pelos seus 20 anos, ou que pelo menos viveu grande parte da sua infância nos anos noventa, vai lembrar da febre que foram as máquinas de pelúcia. Espalhadas em todos os cantos, sempre cheia de luzinhas e pelúcias bonitinhas, chamava a atenção de qualquer um. Eu, modéstia à parte, me tornei uma expert naquela máquina. Com o tempo, acabou virando hobby pra mim. No começo, conseguia levar a garra até o meio da máquina e me contentava com o que viesse. Depois, já com a devida perícia, eu escolhia o bichinho que queria e o conseguia em questão de segundos. Perto de casa tinha uma lojinha que tinha uma máquina dessas e foi aonde eu consegui a maior parte da minha coleção. Quando eu chegava a dona da loja já vinha me olhar pescar minhas pelúcias. Todo dia levava no mínimo umas cinco pra casa. Sem contar nas que pegava por pedidos de pessoas que ficavam às minhas costas olhando meu desempenho. Consegui pra mais de 200 bichinhos. Era um vício. Se fosse esporte, eu podia me inscrever em algum campeonato.
Mas lembro que apesar de conseguir várias pelúcias, um dia algo me desafiou. Como de costume, cheguei na loja, dei oi pra dona e pros funcionários, comprei umas fichas e fui me divertir. Quando no meio da máquina enxerguei uma pelúcia de um gorila. Ele não era bonito pra mais ninguém. Tinha cara de mal, era grande, preto, tinha uma banana em uma das mãos e estava preso no meio de um monte de outras pelúcias. A dona da loja me falou que mais cedo três pessoas tinham tentado tirá-lo e sem sucesso haviam desistido. Eu, teimosa do jeito que sou, enfiei na cabeça que eu queria aquele gorila. Tentei um monte de vezes e nada. Ele continuava lá. Me vinham até pelúcias que eu não queria e que acabei doando pra crianças que estavam me olhando e continuei tentando agarrar o gorila. Mas naquele dia tive que voltar pra casa sem ele. E assim a semana seguiu. Todos os dias, durante um mês inteirinho eu tentei pegar aquele gorila pra mim. Chegava a ter calafrios quando via alguém tentando, agarrando o gorila, a garra subindo, levando ele pra saída da máquina e de repente ele caía no meio dos outros bichinhos. Ufa! Respirava aliviada sabendo que ainda tinha chances. Um dia, cheguei para tentar mais uma vez pegar meu objeto de desejo. E em algumas poucas tentativas, consegui. Ele era meu. Não era um dia em que o sol estava mais brilhante ou o céu mais azul. Não chovia, nem tinha arco-íris. Não teve uma banda tocando aquela música do Ayrton Senna, nem estouro de fogos na rua. Ninguém veio me trazendo um buquê de flores, uma coroa de louro e me dando banho de champanhe. Pois ninguém ali, além de mim, sabia que o mundo tinha acabado de se tornar mais laranja, mais bonito e mais feliz. Eu era criança e tinha conseguido vencer um desafio. Eu queria muito uma coisa e me empenhei em consegui-la. Com meus poucos anos de estadia nessa vida, tinha aprendido uma lição importante sobre querer muito algo, tentar incansavelmente e conseguir.
Gostaria de saber em que momento da minha vida eu deixei essa lição de escanteio. Talvez ela estivesse na mesma caixa que o gorila e os outros bichinhos. O fato é que tenho que resgatar os dois. A lição e o gorila King.
Naquele dia, uma coisa torpe havia mudado muito de mim. Eu era uma criança mais madura. Já caminhando pra moldar a personalidade que tenho hoje. De tentar trocentas vezes, dar com a cara na porta o tempo todo, mas nunca desistir e aí, quem sabe, conseguir.
Saí da loja com várias pelúcias na mochila e o King na mão.
- Tchau, dona Socorro. Até amanhã!
- Parabéns, Anne. Vejo que você conseguiu seu macaquinho! Até amanhã!

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Rompendo invólucros.

As pessoas vivem traçando linhas pra tudo. Sempre vivem em um dos extremos. Ou você está do lado esquerdo ou do direito. Se você ficar “em cima do muro” é crucificado.
Eu levei anos para aprender e finalmente entender que estar em cima do muro não me dava estabilidade alguma. Sempre que me decidia por um dos lados, não o aproveitava 100% e aí depois ficava me lamentando.

Descobri que muito mais gente do que eu vive nessa filosofia do “E se”. Uma filosofia nada boa, mas tacitamente adotada pela esmagadora maioria das pessoas.
Vivem se perguntando como seria sua vida se um amor não tivesse acabado, se tivessem escolhido outra profissão se tivessem tido mais filhos, menos filhos. Se não tivessem se casado, se tivesse escolhido morango ao invés de chocolate.
E se... E se... E se...

Tudo gera dúvidas. Nunca dá pra saber se uma coisa vai dar certo ou não, se a gente não tentar. O certo ou errado só aparecem no fim. É a explicação mais lógica e óbvia pro vocábulo: Resultado.
Hoje eu acordei e despertei. Despertei pra vida, pro meu futuro, pro que me espera e pro que eu espero. E foi bom. Bom de verdade ter esse despertar.

É tão bom ter um tempo pra si mesmo. Andar de babydoll o dia todo, comer porcaria, comprar o que quiser, andar onde quiser, ser o quiser, cantar bem alto uma música infantil pra espantar os medos, apertar girafas de pelúcia, usar meias coloridas, se vestir do jeito que quiser...
E acima de tudo, ser você mesmo. É ótimo isso. É um tipo de felicidade inenarrável. E encantadoramente libertador.

Vocês já pararam pra pensar e descobriram que as vezes tem gente na nossa vida que só bloqueia nosso crescimento pessoal?
São pessoas que sugam todo o seu ânimo de cruzar suas linhas. Que te tiram toda a vontade de tentar mudar o que está ruim. Geralmente, o discurso dessas pessoas começam com uma ponta de pessimismo. É como se você tivesse a obrigação ter uma vida miserável, como se não tivesse o direito de melhorar. Tudo porque essa pessoa diz que tá tudo bem em ser assim.

Você não compra uma casa maior, não faz uma pós graduação, não abandona o curso que não gosta pra fazer algo que te deixe feliz, você não viaja só, não estuda outras coisas. E um dia simplesmente, você não é mais você. Acaba virando a outra pessoa. Acaba sendo as preteensões, o marionete, os desejos, os defeitos, os trejeitos de outra pessoa.

E não raro, cegos de paixão, a gente jura que isso é amor. Amor bizarro esse, hein! Mas é bom que esse sadomasoquismo sentimental tem limite.
Há uma linha tênue entre o sofrimento dessa prisão e a alegria de estar livre. A linha está lá. Mas a gente demora pra enxergar.E quando a gente enxerga, bate o medo. Cruzar ou não cruzar a linha? Acomodar-se ou tentar o novo pra ser feliz?

Mas aqui vai uma grande lição: Cruze a linha. Do outro lado você se encontra só com você mesmo e posso jurar que é a melhor coisa do mundo!

E é exatamente nesse ponto que você deve procurar encontrar o seu amor-próprio. Não é quando as pessoas te dizem pra fazê-lo logo depois de uma decepção amorosa enquanto você se afoga em lexotan, nutella e vodca e passa meses na terapia pra curar o fato de que você vomita cada vez que pensa em determinada pessoa. Nesse momento você deve achar é um bom motivo que te incentive a melhorar, reunir forças pra sair do fundo do poço sem cometer suicídio ou homicídio e aí sim enxergar que a luz no fim do túnel até pode ser o trem vindo te acertar, mas você espera que seja o somente o sol em meio a toda escuridão que você se encontra. Depois de curadas as feridas, hora de cultivar dentro de si o desejo de melhora. A vontade própria de se amar para só então amar algo fora de você. É bom ter uma dose de egoísmo e pensar só em você as vezes.

Passar a vida toda obecendo ordens não é o caminho certo. Acredite quando eu digo que tentar agradar a todo mundo é a autoestrada pro fracasso.

Nunca se pode agradar a todos e essa máxima é muito válida. Se você acredita que quer agradar um grupo seleto, assim o faça. Mas pense se isso vale à pena. Existe uma linha entre egoísmo e altruísmo. E aí, como saber qual o tempo certo pra isso? Pergunte a si mesmo. Eu levei um ano.

Mas hoje, do outro lado da linha eu realmente sinto que eu sei o que tenho que fazer, que eu sei o que quero e o que não quero.
Eu sei quem eu sou agora. De verdade, agora sei.

E é com o devido orgulho que digo que encerrei velhos ciclos e abri novas portas
.

sábado, 7 de agosto de 2010

Querido diário

Hoje eu tive um dia atípico pois decidi ocupar minha mente ociosa aprendendo um novo idioma. Há um certo tempo atrás, logo após certas atribulações de minha vida, decidi que iniciaria um novo tempo para mim. Mudei alguns hábitos, adotei novas práticas, mudei móveis de lugar, reformei alguns pensamentos, perdoei pessoas, fui perdoada, tentei novas receitas, novas experiências, novos estilos. Até me policiei mais e comecei a agir de forma diferente com algumas pessoas. Me estressei menos, respirei mais. Disse muita coisa que guardava, ouvi o que queria e até o que não queria, mas relevei tudo pois afinal de contas estava cultivando minha paz interior visando a minha mudança e evolução pessoal.
Aí hoje... Acordei assustada as 06:30h com o celular vibrando na minha orelha e atordoadamente atendi minha mãe que muito delicadamente gritou do outro lado da linha que era pra eu levantar da cama pois já estava atrasada pra aula de francês. Assim o fiz, bem rapidamente e segui pro local do curso. Lá chegando, soube agradavelmente que naquele horário estava ocorrendo a aula de inglês e que o francês era somente as 14h. E para melhorar a situação o professor me recebeu numa sala cheia de crianças que não paravam de gritar um só segundo. Lindas crianças, querido diário. Lindas cordas vocais. Garanto que seus pais nem compraram vuvuzelas nessa Copa.
Saí da sala e no caminho fiquei pensando na secretária que me falou que o curso começava as 08h. Hoje a noite irei rezar para que uma daquelas crianças seja filho dela e se não for, que seu rebento assim se torne.
Como a agenda do meu sábado tinha sofrido essa brusca mudança resolvi sair em busca de comprar um dicionário de francês porque, sabe diário, eu não sei falar quase nada além de Voulez vouz coucher avec moi e sei que isso não é nada bonito de se ouvir de uma moça educada, pura e casta como eu numa conversa formal, a não ser que eu esteja de tailleur justinho, salto agulha, espartilho e máscara de mulher gato.
Com meu pai estressado do lado o que já ía ser cansativo, se tornou uma via crucis com direito a tortura no estilo Hannibal Lecter. Ainda mais quando, cansada, estourada, a ponto de partir pras vias de fato em qualquer ser vivo que ousasse me contrariar, já no 7ª estabelecimento comercial que entrei em busca do bendito dicionário, resolvi comprar umas maquiagens que vi numa vitrine. Mas a fila do caixa pra pagar foi um verdadeiro inferno. Tudo porque tinha uma infinidade de idosos na minha frente e alguns deles receberam a pensão do INSS em moedas, só pode. Depois de 30 minutos numa fila, consegui pagar e quando estava saindo da loja, já na entrada do estacionamento papai me esperava com uma expressão corporal/facial/comportamental que podia apenas sonhar em ter aquele controle remoto do Adam Sandler em “Click” pra avançar o discurso regado a reclamações sobre calor, cansaço e engarrafamento.
Voltei pra casa sem o dicionário. Nunca pensei que fosse tão ruim para encontrar um simples dicionário de francês. Incrível isso! Deve ser porque aqui nessas bandas, o povo acha que o “avoir” (verbo ter) com pronúncia do “oi” como “uá” é o que o urubu faz.
Mas a aula em si foi muito produtiva. Tá certo que eu quase nem lembro mais das regras gramaticais, mas até que deu pra entender boa parte das coisas. Aprender um novo idioma é motivador pra mim, mas ter que relembrar minhas antigas aulas de gramática faz eu lembrar do meu tempo de colégio e não guardo as melhores lembranças dessa época. E apesar de ter sentado numa cadeira na parede há duas fileiras de distância do resto da turma e sentir que todo mundo me olhava como se eu fosse a Carrie a estranha, posso dizer que o ponto alto da aula foi quando eu enfim aprendi a pronúncia correta de “Vous voulez”.
No fim da aula fiz até um novo amiguinho. Ele tem cabelos brancos e cinzas, bigode branco, olhos verdes bem claros. Eu o chamei de Ted e ele é esbelto, carinhoso, afetuoso e lindo. E sabe o que é melhor? Ele ficou me fazendo companhia durante os 30 minutos que fiquei mofando esperando papai resolver ir me buscar. Ele ficou lá, se esfregando no meu braço, fazendo aquele som inconfundível que eu sempre adorei ouvir porque ele, sem sombra de dúvidas, ele é verdadeiro. Ele fez aquele barulinho durante todo o tempo que eu tava dando carinho pra ele e quando eu fui embora, ele me olhou tristonho com aqueles olhos enormes, verdes e tristonhos e disse: Miau.
É querido diário, são novos tempos porém velhos hábitos. Ainda sou a mesma Lenna introspectiva, solitária e antissocial e de mudança mesmo só a reforma gramatical. Hunf!
Arrevoir, mon cheri.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Após os cinco estágios de Kübler-Ross.

Lembro de certa vez, ter lido uma carta muito triste de uma mãe ao seu filho. Essa carta me chamou a atenção. A criança morreu de um motivo que eu desconheço. Era de uma família que eu também desconheço. E viveu uma vida do qual eu nunca sequer cruzei. Mas a dor de perder alguém é sempre igual.

O desespero de não saber como seguir a vida sem a pessoa que você tanto amava. Seja ela seu ascedente, descendente, colateral ou cônjuge. A dor de olhar a vida que a pessoa deixou pra trás. Seus sonhos, seus planos, sua história. Sua família. O prato preferido que nunca mais irá comer. A música que nunca mais irá escutar.

Como superar a dor da perda? Alguns dizem para se procurar Deus. Sim, concordo que esse é o melhor caminho. Deus consegue aliviar uma parte da nossa dor. Mas somos humanos e temos instintos, sentimentos, temos uma essência egoísta de querer tudo para nós o tempo todo. É uma condição humana primária. Querer ter exclusividade. Querer gozar da presença de outra pessoa eternamente. É um erro, mas somos humanos. Pecamos desde os primórdios. Então como levantar a cabeça e seguir adiante sem uma parte do nosso coração?

Perdi minha avó há 12 meses. E ainda não consigo frequentar sua casa porque isso me machuca. Estar lá, olhar pra cadeira que era dela, a cadeira em que ela passava o dia todo sentada, onde fazia suas refeições e conversava com suas visitas, onde rezava o terço todas as noites, onde contava suas histórias, onde divertia sua família com suas piadas.
É tão difícil sentar na cadeira de balanço e olhar pro mesmo lugar que ela olhava todos os dias e saber que ela nunca mais sentará naquela cadeira. E tentar se balançar imaginando quando ela me ninava, quando dedilhava meus cabelos... Tão difícil olhar pra tudo isso e saber que nunca mais serei questionada sobre os estudos, os namorados e as férias.

Tão triste cancelar os planos da minha festa de formatura onde tudo que fazia sentido era que ela subisse comigo ao palco como minha paraninfa e onde eu pudesse lhe entregar o meu diploma dizendo “Essa é pra você e por você, vó!”
Tão difícil comer creme de bacuri ou açaí e não sentir saudades de fazer isso com ela. Ou de aturar assistir o Silvio Santos na TV apenas porque ela gostava.É impossível ver o domingo como um feliz dia da semana quando todos os almoços depois da sua partida simplesmente perderam o sentido, perderam a graça e perderam a alegria.

E é terrivelmente atormentador entrar no carro e dirigir até a sua casa e retornar na esquina anterior porque por um momento tive uma vã esperança de que talvez a enxergasse naquela janela, e mais uma vez pudesse ouvir "Ô filha, tá passeando?"

Como, pergunto-me eu, como superar em 12 meses a falta de quem me fez feliz por 21 anos?

Então todas as noites eu peço, eu rezo, eu imploro que Deus trate bem da minha vózinha porque ela é um tesouro, o meu grande tesouro a quem eu devotei todo o meu carinho, toda a minha atenção, por quem eu sacrifiquei meu sono por noites a fio num hospital, pra quem eu guardava meus domingos em meio a uma corrida rotina, pra quem as vezes eu cozinhava com tanto empenho, pra quem eu rezei a Deus a primeira vez pedindo um milagre, movida única e exclusivamente por amor.
Por todas as coisas nesses 21 anos, por todo amor recíproco, puro e verdadeiro é que hoje eu faço um esforço pra tentar entender que um dia estaremos juntas, no melhor lugar onde tudo é paz, amor e felicidade e onde nem a dor que meu coração sente agora, poderá nos atingir.

Não é o silêncio que me incomoda. É a falta da voz dela...



quinta-feira, 10 de junho de 2010

Memória olfativa

Acordei com o canto dos passarinhos. Costumava achar isso lindo. Agora odeio. Deve ser porque antes eu acordava depois de 8 maravilhosas horas de sono. Agora esses bichos sequer me deixam dormir. Entre o último pensamento antes de dormir e agora que olho pro relógio noto que não cheguei a dormir nem 2 horas completas. Droga. Maldita insônia.

Levantei da cama e percebi que tem um buraco se formando no lado esquerdo. O meu lado. Isso só serve pra me deixar mais deprimida. Maldita indústria de colchões! Devem fazer isso conluiados com o capeta, só pode. O buraco no meu colchão parece gritar o quanto eu sou ridícula. Tenho vontade de jogar o colchão pela janela. Olho pela persiana e os raios de sol me cegam. Odeio o sol. Tô com preguiça. Vou ficar aqui quieta mesma. Eu a minha loucura e a minha insônia. As únicas coisas que não me largam.

Estou há 3 dias sem tomar banho. Tem pacotes de comida artificial por todos os lados da casa. Já engordei uns 5 kg pelo menos. Meu cabelo não vê nada além do combinado shampoo-e-condicionador há mais de um mês. Parece que um furacão devastador invadiu a minha sala. E ter demitido a empregada pra ficar na minha fossa solitária sem ser importunada, me parece agora a pior ideia dos últimos tempos.
Abri o armário e peguei o tubo de creme dental. Notei que estava vazio. Que raiva. Queria duendes mágicos na minha casa. Queria uma empregada-robô. Queria uma aia. Queria ser a feiticeira pra só mexer o nariz e tudo ficar como eu quero. Quero a minha mãe, é isso. Tenho 29 anos, minha própria casa, minha vida independente e quero a minha mãe só porque não tenho creme dental. Dane-se! Vou usar o enxaguatório bucal. Depois meu dentista resolve meus problemas odontológicos com super cremes dentais de tecnologia de ponta e aqueles aparatos futurísticos de luz azul.

A fome deu sinal de existência e na geladeira as únicas coisas próprias para consumo eram umas garrafas d’água, meio pote de nutella, duas cenouras, cinco latas de cerveja e uma caixa de leite de soja.
Nada disso era considerável palatável se misturado. Peguei uma cerveja, fechei a geladeira resmungando e decidi que ia ficar com fome mesmo. Passei a mão no pote de biscoitos que também estava vazio.
Droga! Alguém entrou aqui e roubou o meu creme dental, meu desodorante e minha comida! Que merda!
Mas não, não era isso. Essas coisas eu mesma tinha acabado. Ninguém roubaria nada disso de mim. Ele já havia me roubado meu amor e a sua presença naquela casa. Era por isso que eu não tinha mais nada. Porque ele era tudo. E se alguma coisa ali era mais vazia do que a minha despensa, com certeza era eu.

Fui tomar banho e no chuveiro vi que não tinha mais nada do meu sabonete líquido. Gosto dele porque cheira a morango. Procurei na prateleira de cima e havia o dele de chá verde. Era uma perfeita combinação, pois nossas peles tinham um casamento perfeito de aromas. Morango e chá verde. Na minha memória olfativa aquilo era sem dúvida a melhor coisa do mundo.
A última lembrança que eu tenho daquele cheiro foi quando ele foi embora e me deixou. Ele queria o que eu não podia dar. Ele queria o que eu não podia ser. Ele queria ir e eu queria ficar. Ele foi, eu fiquei.

Fiz a minha escolha. Decidi que não queria casamento, que não queria filhos. Que queria gastar todo meu dinheiro comigo. Decidi não vencer meu medo. Não arrisquei. Ele queria arriscar. Queria um bebê, queria me dar o seu sobrenome. Ele queria uma família. E eu queria manter meu corpo e a minha disponibilidade de viajar. Ele queria crianças correndo pela casa no almoço de domingo. Eu tremia de pavor só de pensar na dor do parto. Ele queria ter uma mulher pra chamar de esposa e eu só queria continuar como eu tava. Ele queria acordar de madrugada pra cuidar de um bebê. Eu queria poder mandar ele pra casa dele cada vez que a gente brigasse. Ele queria alianças de ouro maciço nos nossos dedos e eu preferia que ele nos comprasse uma viagem pela Europa. Ele queria comprar uma casa maior com piscina e playground. Eu só pensava em reformar o quartinho do depósito e fazer ali o meu escritório. Ele comprou um carro maior que tinha o banco de trás com o tamanho perfeito pra se instalar uma cadeirinha de criança. Eu comprei diamantes.

Naquela madrugada ele bateu a porta e se foi. E eu fiquei sozinha, chorando no chão da cozinha sentindo o cheiro marcante do morango enquanto o cheiro do chá verde se dissipava pelo ar.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Então Amsterdã aconteceu.

Era mês de férias e eu não tinha viajado. A cidade estava mais tranquila do que de costume. Sem filas no supermercado eu podia me concentrar completamente nas minhas finanças e podia ficar parada lendo quantos rótulos eu quisesse.

Estendi a mão e catei um desodorante pra mim. Lembrei do meu sabonete. Olhei de relance e vi que minha cera depilatória estava com preço em promoção. Mas pra que levar? Tem 3 meses que ninguém dá uma conferida lá na amiguinha. Fazer isso pra que? Me resolvo só com creme depilatório mesmo. Não vou ficar com a virilha coçando e com pelos encravados à toa.

No supermercado só tem uma coisa que odeio mais do que filas. É que na maioria das vezes o que eu quero sempre está na prateleira de baixo. Então estou eu lá pagando cofrinho procurando o único desinfetante com cheiro que me é agradável quando ouço alguém exclamar: Letícia!
Virei pra olhar e percebi que era a Malu. Uma velha conhecida nossa. Ou minha. Nem sei. Ainda estou num período de adaptação dessa minha nova “identidade”.

-Oi Malu! Tudo bom?
-Tudo! E com você?
-Bem.

Isso não ia prestar. Queria ter o dom de bloquear pessoas ao vivo. Ou estar ali com status invisível. Mas não podia fazer nada a não ser torcer pra que ela não fizesse a cruel pergunta. Toda a minha fé se voltou no pedido mental de que ela não pronunciasse aquelas letras. Que aquele nome não saísse pela boca dela.

-E então, cadê a Fernanda?

Silêncio sepulcral. Me senti aquele esquilo da Era do gelo. Era como se eu estivesse dentro de um bloco de gelo. Congelada. Estática. Queria ter um ataque cardíaco ali naquela hora. Cair estatelada no chão como numa cena de novela mexicana. Sem falar nada. Olhos esbugalhados, uma tez pálida, a jugular pulando. Só desabar no chão como um prédio desaba quando é demolido. Queria uma nave espacial me abduzindo com seu néon verde. Queria um furacão no meio do corredor de produtos de limpeza. Queria uns terroristas da Al Qaeda correndo na minha direção e me arrastando dali. Queria exatamente tudo pra sumir da frente dela sem ter que responder àquela pergunta.

- Ah ela... é... hum... ela viajou.
-Tá viajando, é? Pra onde? Quando ela volta? Vamos marcar alguma coisa. O Beto comprou um sítio no interior. Seria ótimo fazer um churrasco lá qualquer dia desses.

Meu Deus que mulher burra! Falei “viajou”. Passado. Pretérito do verbo se foi, não volta mais, levou o meu cachorro e deixou a conta do condomínio pra eu pagar. Só isso.

-Não Malu, a Fê viajou. Sem planos de volta. Ela tá morando em Amsterdã agora.
- Então vocês... Err... Vocês...

Ela emudeceu. Como eu emudeci quando constatei a mesma coisa. Respondemos igual. Faltam as palavras quando você vê que uma história de amor terminou. Tudo o que resta é o silêncio. Ela levou o som da sala, levou sua TV, levou nosso cachorro. Era tudo dela. Tudo comprado com o dinheiro dela. Não tinha mais música tocando enquanto eu passava roupa, não tinha mais os latidos do pequeno Luke aos meus pés sentindo cheiro da comida na cozinha, eu só assistia novela no meu quarto onde ficava a minha TV porque o lugar da outra na sala espera até hoje pra ser preenchido por um quadro. Ou outra TV. Por hora não tem nada lá porque eu não tenho colo de ninguém pra deitar no sofá.

-Pois é Malu. É isso. Acabou.
-Como assim, Letícia? Acabou assim do nada?
-Do nada não. Deu certo por 5 anos. Mas aí essas coisas acontecem.
-Eu sei. Mas me fala de você. Como você tá com tudo isso?
- Ah foi melhor assim. Foi melhor pras duas. A vida segue, né?

Respondi mais 3 frases memorizadas da pilha de livros de auto-ajuda que andei lendo. Só queria que ela parasse de falar naquele assunto. Depois de alguns minutos de tortura psicológica, nos despedimos. E Malu falou “Fica bem!”

Eu estava era bem acabada. Bem era uma palavra que não existia no meu dicionário naquele momento. Eu não estava bem depois de tudo aquilo. Tomei um monte de calmantes, chorei direto durante dias. Faltava ao trabalho porque enchia a cara de vodca, comia batata frita no café, pizza no almoço e sorvete no jantar. Tinha coisas entaladas. Queria ter mandado ela a lugares feios, queria ter jogado suas roupas pela janela. Havia noites que sonhava com isso. Ela na porta de casa gritando pra mim e eu jogando os Pradas dela lá no meio do asfalto. Jogando seu celular no vaso sanitário e dando descarga. Quebrando todos os vidros do carro dela com o meu rolo de macarrão como naqueles filmes italianos. Imaginei meus pratos de porcelana chinesa voando pela sala como discos de frescobol acertando a parede, os móveis, a maldita TV dela.

Quis voar por horas, podia quase congelar na gélida Amsterdã mas queria jogar um balde de água nela enquanto ela estivesse fazendo chapinha. Queria sequestrar o cachorro de volta. Queria roubar o seu Ipod e dá-lo pra um mendigo na rua. Queria destruir todos os arquivos do laptop. Queria gritar na rua, no meu holandês enrolado que eu a odiava. Queria plantar drogas na mala dela. Queria processá-la. Queria extraditá-la de volta pro Brasil. Queria. Não fiz!

Pelo contrário, saí do supermercado, voltei pra casa, guardei as compras e fui pro salão me presentear com um dia de beleza. Saí com o cabelo de cor e corte diferente. Me depilei, fiz as unhas, vários tratamentos estéticos. Saí transpirando superação e com uma aparência de atriz de Hollywood.

Decidi que daria volta por cima. Saí na rua com uma particular missão de arranjar um novo amor. Poderia até virar hetero. Entrei na cafeteria e pedi um capuccino. Um rapaz encostou no balcão, sorriu pra mim e deu uma piscadela. Pediu um café e uma fatia de torta holandesa.

Droga. Odeio os homens!

domingo, 30 de maio de 2010

Vazio.

Minha cabeleireira me encontrou na padaria e perguntou quando ia aparecer por lá pelo salão dela essa semana. Tive vontade de dizer “nunca”, mas meu restinho de sociabilidade me permitiu sorrir amarelo e responder “Logo mais. Rotina. Trabalho. Muito!”
Quando ela se afastou percebi que dei uma resposta quase “tuitada”. Idéia geral em menos de 140 caracteres. Não consigo mais nem montar frases claras.
Na hora de fazer meu pedido um ato falho me acometeu e acabei pedindo 10 pães franceses, 200g de pão de queijo, um vidro de requeijão, 300g de queijo prato, 300g de presunto e um garrafa grande de suco de uva. O que geralmente pedia e durava por 2 dias. Paguei minhas compras no caixa e no caminho de casa me ocorreu: quem comeria tudo aquilo?

Me deu vontade de pegar as sacolas e ir pro aeroporto. Pegar o primeiro voo que tivesse e viajar por duas horas pra tomar café com os meus pais. Mas seria muita loucura. E eu tinha que trabalhar mais tarde.

Tomei café sozinha. Estava sozinha. Era sozinha. O tempo passava e eu continuava sozinha. Só uma xícara de café, só um sanduiche, só dois pães de queijo, só um copo de suco. Só. E eu também, só.

Uma semana antes, quando cheguei em casa ela ainda não havia chego. Fui tomar banho e como se meu sexto sentido me cutucasse pra mostrar algo, olhei pro balcão e o perfume dela não estava ali. Tentei não bancar a paranoica. Mas já podia prever que alguma coisa estava acontecendo. Ela já estava estranha há semanas. Mas nunca falava nada. Quando eu perguntava o que ela tinha ela só respondia “nada.” E assim a vida seguia.

Mas naquele dia, depois do banho ela me esperava sentada na cama, chaves e bolsa nas mãos. Vesti o roupão e fui lhe dar um beijo. Ela virou o rosto e me afastou com o antebraço.
-Temos que conversar, Luana. Preciso ser honesta com você.
-O que foi, amor? O que aconteceu?
-Estou indo embora. Nós não damos mais certo. Não consigo mais fazer isso. Me sinto presa, sufocada, acorrentada. Vou viajar. Consegui uma bolsa de estudos pra fazer meu doutorado em Yale.
-Bolsa de estudos? Você subornou alguém lá dentro? Pelo que eu saiba essas coisas demandam tempo. Um teste prévio.
-Eu fiz a prova no ano passado.
-E quando planejava me contar isso? No meu aniversário de 80 anos?
-Só quero ser honesta com você. Eu te amo, mas isso não funciona mais...
-Isso? Nós, você quer dizer, né? Quanta amabilidade. Seu amor e sua sinceridade são tocantes, minha cara!
-Odeio esse seu jeito irônico. Isso me irrita muito!
-Eu também odeio seu jeito de fugir de tudo e se trancar no seu mundo impenetrável e expulsar qualquer pessoa que te dê um pouquinho de amor. Mas por nós, eu aturei isso todos esses anos! Por você!
-Não torne as coisas mais difíceis pra gente.
-Você é quem fez ficar pior. Podia ter saído sem se despedir. Você sempre foge de tudo mesmo...
-Eu tinha que conversar com você e explicar tudo.
-Explicar o quê, mulher?! Que você está mais uma vez chutando a minha bunda e me colocando pra fora da sua vida? Você fez isso há anos atrás e está fazendo isso agora novamente. Na sua segunda chance. Vai embora mesmo. Você nunca me amou. Faça isso logo de uma vez!

Ela se calou. Imóvel na beira da cama. Talvez por não esperar que aquela fosse minha reação. Ininteligivelmente eu não derramei uma lágrima sequer na sua frente. Dei-lhe as costas e fui pentear meus cabelos no banheiro.

-Nós podemos continuar amigas. Não há por que ter brigas, ou choros. Ninguém precisa se machucar aqui...
-Você ainda está aí? Quer dinheiro para o táxi?

Depois de exatas 12 escovadas que me arrancaram alguns fios de cabelo eu ouvi a porta bater. Corri pra sala com uma vã esperança de que suas malas continuassem ali. Que suas chaves estivessem penduradas no porta-chaves de florzinhas. Não estava. Nada mais estava ali. Suas roupas não estavam mais no guarda-roupa. Havia um espaço vazio na estante de livros, havia o espaço do perfume no balcão, os quadros de fotos, da TV da sala. Só ficaram espaços vazios. A minha cama vazia. E eu, completamente vazia.

Deitei no sofá sem nem saber o que sentir. Havia sido novamente abandonada. Minha cabeça girava tentando digerir tudo aquilo. Tudo vazio.

O telefone tocou. Mediante meu “alô” quase afônico, do outro lado ouvi um português empenhado com traços marcantes de inglês, me perguntar:

-Por favor, poderia falar com a senhora Talita Martins?
-Ela foi pro inferno, meu senhor. Pro inferno!!!




sábado, 29 de maio de 2010

A importância da aposição*

*Na Medicina as suturas cirúrgicas contínuas tem uma subdivisão em relação à aparência e a aposição visa a união entre as bordas do tecido no mesmo plano.


Depois de 7 horas de cirurgia, Samantha dava o último ponto da sutura no paciente e sentia que enfim poderia ir pra casa descansar. Ultimamente tinha feito muitos plantões além do seu horário habitual. Se tornar atendente cirúrgica era seu maior sonho desde o ingresso na escola de Medicina. Há 6 meses seu sonho enfim tornara-se realidade. A carga de trabalho havia aumentado de forma que todos a sua volta perguntavam-se como ela dava conta da rotina atribulada. Passava horas sem dormir. Chegava a dobrar plantões. Atendia emergências e cirurgias eletivas.

Tudo que ela queria era manter-se o máximo de tempo possível na sala de operações onde encontrava paz e sossego. Onde tinha o controle de tudo em suas mãos pelo menos no tempo que decorria cada cirurgia.
Cirurgiões gostam de controlar, gostam de comandar a situação, se sentem deuses invencíveis. Samantha não baixava a cabeça, não ficava calada quando algum colega questionava sua escolha cirúrgica, dificilmente acatava sugestões sobre que tipo de técnica utilizar. Estava em estudo constante sempre buscando novidades em tratamentos. Era antenada com os avanços da medicina e gostava de ganhar destaque por isso. Sentia um prazer incomensurável cada vez que atendia um paciente que lhe dizia "Recebi as melhores indicações sobre você, doutora. Me disseram que você é a melhor".
Ela era a melhor na sua área. Sabia disso. Mas só tinha essa certeza na vida. Pois sua profissão era a única coisa que desempenhava impecavelmente.
Quando finalizava a cirurgia ficou pensando em que ponto utilizaria na síntese da pele. Tinha de fazer uma sutura contínua, mas sabia que a simples não era uma boa escolha a ser usada naquela área já que o tecido seria submetido à tensão. Precisava usar um ponto que propiciasse maior segurança.

Usou então uma sutura contínua festonada em que a cada passagem através dos tecidos o fio une-se ao ponto passado anterior garantindo assim que cada ponto tenha ponto reserva que garante a estruturação da sutura. Apesar de esta técnica ter um maior dispêndio de tempo e de material a escolheu porque a grande vantagem é a notável estabilidade na eventualidade da falha de um nó ou pedaço da linha. Quando isto ocorre não causa perda de toda a sutura. Além de que, o tecido apresentaria uma tendência mínima a movimentar-se e com isso abalar o processo de cicatrização.

Na casa dos pais todos testavam sua paciência ao falar todo dia sobre o estilo de vida que ela estava levando. Estava cansada de ser criticada por sua escolha. A mãe mandava que ela tirasse mais folgas, o pai dizia que a qualquer hora ela desmaiaria de cansaço. O irmão empenhava-se num mantra que vinha desde a preocupação com a sua saúde até a crítica de que ela estaria "passando do ponto" de casar.

Certo dia fez as malas, bateu a porta da sala gritando que não precisava de ninguém ali pra controlar sua vida e saiu de casa. Foi morar com o namorado pra livrar-se das conversas familiares. Brigava com todos, sofria calada, chorava no chuveiro. Sabia que seu jeito de ser não era dos melhores e mais agradáveis, mas não se empenhava em melhorar. Bradava a plenos pulmões que era assim mesmo e quem não gostasse que ela só lamentava porque não iria mudar pra agradar ninguém. No fundo, Samantha sabia que não mudava por sua própria incompetência. Sabia que era ela e tão somente ela quem sabotava todas as suas relações afetivas.
Foi seu orgulho que lhe fez perder amigos, namorados, o carinho da família. Até o gato tinha morrido de depressão depois do abandono dela. Samantha não gostava da vida que levava. O trabalho nada mais era do que uma fuga da sua realidade. Nada que ela fazia dava certo. Nenhum namoro sobrevivia há um ano. Ela de fato, só tinha o trabalho. Era o que lhe dava forças pra continuar vivendo embora esse não fosse seu maior desejo em muitos momentos.
Mas passados 4 meses que morava com o namorado a situação da casa dos pais se repetia. Ele reclamava de sua ausência. Passavam dias sem se falar pois seus horários de entrada e saída em casa não mais se conciliavam. Jantares eram adiados, programas com amigos eram cancelados em cima da hora, o namorado ia sozinho aos aniversários dos parentes, os almoços de domingo eram interrompidos pelas chamadas de emergência do hospital. Não havia folgas, não havia férias. Os pacientes vinham em primeiro lugar. Esquecia-se de priorizar quem a amava. Preferia manter relações com pessoas distantes de sua realidade do que envolver-se a fundo com as que estavam a seu redor.

O namorado começava a brigar e Samantha não tinha paciência então gritava sempre sua frase pré-definida “Eu sou assim mesmo. Se você não gosta de mim então vá embora”. Mas falava aquilo da boca pra fora porque sabia que ele sempre lhe perdoava no fim das contas.
As vezes, não raro, quando deitava pra dormir chegava até a pensar em casar. Imaginava seu vestido, o bolo, a festa, o salão repleto de violetas e Thiago de fraque preto lhe esperando no altar. Chegava a se arrepender das brigas e enquanto o observava dormindo no sofá colocava na cabeça que quando acordassem iriam conversar e resolver tudo.
Mas ao primeiro raiar de sol sua coragem se desfazia como fumaça e o despertador denunciava que as pré-rondas começariam em meia hora. Saía de casa e ignorava mais uma vez a voz dentro de sua cabeça que lhe dizia pra acordá-lo e dizer que lhe amava pedindo desculpas pelas brigas. Enterrava no fundo da alma a vontade de ir tomar café com a família e perguntar como estavam. Ignorava completamente o súbito desejo de pegar o celular e discar o número da melhor amiga – com quem tinha brigado por motivos infundados – pra marcar um almoço e fazerem as pazes para matar a saudade que lhe consumia.
Samantha não fez nada disso. Ignorou tudo que não cheirasse a éter ou tivesse correlação com a medicina. Achava que o trabalho lhe bastaria. Que se amasse o trabalho, se ganhasse muito dinheiro com ele, seria feliz. Esqueceu-se de que o dinheiro só compra acessórios de alegria momentânea.

Mas naquela noite, ao terminar o último ponto da sutura decidiu que ia mudar de uma vez por todas. Que seria mais benevolente, mais flexível, mas dócil. Saiu da sala de operações, se trocou e dirigiu até em casa. Teve uma desagradável surpresa quando abriu a porta do apartamento e viu que só restavam suas coisas e um bilhete sobre a mesa com a letra de Thiago explicando que eles não davam mais certo. Que não era aquilo que ele queria da vida apesar de muito lhe amar. Observou no canto esquerdo do papel uma letra machada. Supôs ser uma lágrima. Um sentimento ruim lhe arrebatou. Olhou pra cama recém-vazia do gato na varanda e se sentiu mais sozinha ainda.

Com os olhos marejados foi em direção à casa dos pais. O porteiro sem entender porquê ela estava ali comentou que eles tinham se mudado há quase um mês e que não sabia lhe dizer pra onde teriam ido.
Dirigiu pela cidade sem rumo algum. Encostou o carro em qualquer esquina, pegou o celular e ligou pra amiga. Sabia que apesar de tudo, ela iria relevar a briga, lhe perdoaria e daria carinho e colo pra chorar. O celular chamou duas vezes sem resposta alguma. Na terceira tentativa a voz irritada do outro lado da linha – sem lhe dar qualquer chance de falar algo primeiro – disse: Quando eu quis conversar, você não quis. Quando eu pedi desculpas você não aceitou. Quando eu precisei de você de verdade, você me ignorou e me abandonou. Não temos nada a conversar, Sam!

A chamada finalizou-se antes que ela sequer conseguisse balbuciar qualquer palavra em sua defesa.

O fio havia se arrebentado e isso abalou todo o resto do trabalho. Não havia pontos enlaçados para garantir a segurança ou facilitar o recomeço. Confiou nos pontos simples achando que eles suportariam a pressão, mas viu que todos os pontos haviam se rompido e sua ferida estava fragilmente exposta. Costurava sua trajetória com pontos simples pois só sabia fazer pontos reservas com a vida de outras pessoas.


Samantha soube da pior forma possível que ela passou a vida toda costurando sua vida com uma sutura simples ao invés de tecer uma sutura festonada.