domingo, 30 de maio de 2010

Vazio.

Minha cabeleireira me encontrou na padaria e perguntou quando ia aparecer por lá pelo salão dela essa semana. Tive vontade de dizer “nunca”, mas meu restinho de sociabilidade me permitiu sorrir amarelo e responder “Logo mais. Rotina. Trabalho. Muito!”
Quando ela se afastou percebi que dei uma resposta quase “tuitada”. Idéia geral em menos de 140 caracteres. Não consigo mais nem montar frases claras.
Na hora de fazer meu pedido um ato falho me acometeu e acabei pedindo 10 pães franceses, 200g de pão de queijo, um vidro de requeijão, 300g de queijo prato, 300g de presunto e um garrafa grande de suco de uva. O que geralmente pedia e durava por 2 dias. Paguei minhas compras no caixa e no caminho de casa me ocorreu: quem comeria tudo aquilo?

Me deu vontade de pegar as sacolas e ir pro aeroporto. Pegar o primeiro voo que tivesse e viajar por duas horas pra tomar café com os meus pais. Mas seria muita loucura. E eu tinha que trabalhar mais tarde.

Tomei café sozinha. Estava sozinha. Era sozinha. O tempo passava e eu continuava sozinha. Só uma xícara de café, só um sanduiche, só dois pães de queijo, só um copo de suco. Só. E eu também, só.

Uma semana antes, quando cheguei em casa ela ainda não havia chego. Fui tomar banho e como se meu sexto sentido me cutucasse pra mostrar algo, olhei pro balcão e o perfume dela não estava ali. Tentei não bancar a paranoica. Mas já podia prever que alguma coisa estava acontecendo. Ela já estava estranha há semanas. Mas nunca falava nada. Quando eu perguntava o que ela tinha ela só respondia “nada.” E assim a vida seguia.

Mas naquele dia, depois do banho ela me esperava sentada na cama, chaves e bolsa nas mãos. Vesti o roupão e fui lhe dar um beijo. Ela virou o rosto e me afastou com o antebraço.
-Temos que conversar, Luana. Preciso ser honesta com você.
-O que foi, amor? O que aconteceu?
-Estou indo embora. Nós não damos mais certo. Não consigo mais fazer isso. Me sinto presa, sufocada, acorrentada. Vou viajar. Consegui uma bolsa de estudos pra fazer meu doutorado em Yale.
-Bolsa de estudos? Você subornou alguém lá dentro? Pelo que eu saiba essas coisas demandam tempo. Um teste prévio.
-Eu fiz a prova no ano passado.
-E quando planejava me contar isso? No meu aniversário de 80 anos?
-Só quero ser honesta com você. Eu te amo, mas isso não funciona mais...
-Isso? Nós, você quer dizer, né? Quanta amabilidade. Seu amor e sua sinceridade são tocantes, minha cara!
-Odeio esse seu jeito irônico. Isso me irrita muito!
-Eu também odeio seu jeito de fugir de tudo e se trancar no seu mundo impenetrável e expulsar qualquer pessoa que te dê um pouquinho de amor. Mas por nós, eu aturei isso todos esses anos! Por você!
-Não torne as coisas mais difíceis pra gente.
-Você é quem fez ficar pior. Podia ter saído sem se despedir. Você sempre foge de tudo mesmo...
-Eu tinha que conversar com você e explicar tudo.
-Explicar o quê, mulher?! Que você está mais uma vez chutando a minha bunda e me colocando pra fora da sua vida? Você fez isso há anos atrás e está fazendo isso agora novamente. Na sua segunda chance. Vai embora mesmo. Você nunca me amou. Faça isso logo de uma vez!

Ela se calou. Imóvel na beira da cama. Talvez por não esperar que aquela fosse minha reação. Ininteligivelmente eu não derramei uma lágrima sequer na sua frente. Dei-lhe as costas e fui pentear meus cabelos no banheiro.

-Nós podemos continuar amigas. Não há por que ter brigas, ou choros. Ninguém precisa se machucar aqui...
-Você ainda está aí? Quer dinheiro para o táxi?

Depois de exatas 12 escovadas que me arrancaram alguns fios de cabelo eu ouvi a porta bater. Corri pra sala com uma vã esperança de que suas malas continuassem ali. Que suas chaves estivessem penduradas no porta-chaves de florzinhas. Não estava. Nada mais estava ali. Suas roupas não estavam mais no guarda-roupa. Havia um espaço vazio na estante de livros, havia o espaço do perfume no balcão, os quadros de fotos, da TV da sala. Só ficaram espaços vazios. A minha cama vazia. E eu, completamente vazia.

Deitei no sofá sem nem saber o que sentir. Havia sido novamente abandonada. Minha cabeça girava tentando digerir tudo aquilo. Tudo vazio.

O telefone tocou. Mediante meu “alô” quase afônico, do outro lado ouvi um português empenhado com traços marcantes de inglês, me perguntar:

-Por favor, poderia falar com a senhora Talita Martins?
-Ela foi pro inferno, meu senhor. Pro inferno!!!




sábado, 29 de maio de 2010

A importância da aposição*

*Na Medicina as suturas cirúrgicas contínuas tem uma subdivisão em relação à aparência e a aposição visa a união entre as bordas do tecido no mesmo plano.


Depois de 7 horas de cirurgia, Samantha dava o último ponto da sutura no paciente e sentia que enfim poderia ir pra casa descansar. Ultimamente tinha feito muitos plantões além do seu horário habitual. Se tornar atendente cirúrgica era seu maior sonho desde o ingresso na escola de Medicina. Há 6 meses seu sonho enfim tornara-se realidade. A carga de trabalho havia aumentado de forma que todos a sua volta perguntavam-se como ela dava conta da rotina atribulada. Passava horas sem dormir. Chegava a dobrar plantões. Atendia emergências e cirurgias eletivas.

Tudo que ela queria era manter-se o máximo de tempo possível na sala de operações onde encontrava paz e sossego. Onde tinha o controle de tudo em suas mãos pelo menos no tempo que decorria cada cirurgia.
Cirurgiões gostam de controlar, gostam de comandar a situação, se sentem deuses invencíveis. Samantha não baixava a cabeça, não ficava calada quando algum colega questionava sua escolha cirúrgica, dificilmente acatava sugestões sobre que tipo de técnica utilizar. Estava em estudo constante sempre buscando novidades em tratamentos. Era antenada com os avanços da medicina e gostava de ganhar destaque por isso. Sentia um prazer incomensurável cada vez que atendia um paciente que lhe dizia "Recebi as melhores indicações sobre você, doutora. Me disseram que você é a melhor".
Ela era a melhor na sua área. Sabia disso. Mas só tinha essa certeza na vida. Pois sua profissão era a única coisa que desempenhava impecavelmente.
Quando finalizava a cirurgia ficou pensando em que ponto utilizaria na síntese da pele. Tinha de fazer uma sutura contínua, mas sabia que a simples não era uma boa escolha a ser usada naquela área já que o tecido seria submetido à tensão. Precisava usar um ponto que propiciasse maior segurança.

Usou então uma sutura contínua festonada em que a cada passagem através dos tecidos o fio une-se ao ponto passado anterior garantindo assim que cada ponto tenha ponto reserva que garante a estruturação da sutura. Apesar de esta técnica ter um maior dispêndio de tempo e de material a escolheu porque a grande vantagem é a notável estabilidade na eventualidade da falha de um nó ou pedaço da linha. Quando isto ocorre não causa perda de toda a sutura. Além de que, o tecido apresentaria uma tendência mínima a movimentar-se e com isso abalar o processo de cicatrização.

Na casa dos pais todos testavam sua paciência ao falar todo dia sobre o estilo de vida que ela estava levando. Estava cansada de ser criticada por sua escolha. A mãe mandava que ela tirasse mais folgas, o pai dizia que a qualquer hora ela desmaiaria de cansaço. O irmão empenhava-se num mantra que vinha desde a preocupação com a sua saúde até a crítica de que ela estaria "passando do ponto" de casar.

Certo dia fez as malas, bateu a porta da sala gritando que não precisava de ninguém ali pra controlar sua vida e saiu de casa. Foi morar com o namorado pra livrar-se das conversas familiares. Brigava com todos, sofria calada, chorava no chuveiro. Sabia que seu jeito de ser não era dos melhores e mais agradáveis, mas não se empenhava em melhorar. Bradava a plenos pulmões que era assim mesmo e quem não gostasse que ela só lamentava porque não iria mudar pra agradar ninguém. No fundo, Samantha sabia que não mudava por sua própria incompetência. Sabia que era ela e tão somente ela quem sabotava todas as suas relações afetivas.
Foi seu orgulho que lhe fez perder amigos, namorados, o carinho da família. Até o gato tinha morrido de depressão depois do abandono dela. Samantha não gostava da vida que levava. O trabalho nada mais era do que uma fuga da sua realidade. Nada que ela fazia dava certo. Nenhum namoro sobrevivia há um ano. Ela de fato, só tinha o trabalho. Era o que lhe dava forças pra continuar vivendo embora esse não fosse seu maior desejo em muitos momentos.
Mas passados 4 meses que morava com o namorado a situação da casa dos pais se repetia. Ele reclamava de sua ausência. Passavam dias sem se falar pois seus horários de entrada e saída em casa não mais se conciliavam. Jantares eram adiados, programas com amigos eram cancelados em cima da hora, o namorado ia sozinho aos aniversários dos parentes, os almoços de domingo eram interrompidos pelas chamadas de emergência do hospital. Não havia folgas, não havia férias. Os pacientes vinham em primeiro lugar. Esquecia-se de priorizar quem a amava. Preferia manter relações com pessoas distantes de sua realidade do que envolver-se a fundo com as que estavam a seu redor.

O namorado começava a brigar e Samantha não tinha paciência então gritava sempre sua frase pré-definida “Eu sou assim mesmo. Se você não gosta de mim então vá embora”. Mas falava aquilo da boca pra fora porque sabia que ele sempre lhe perdoava no fim das contas.
As vezes, não raro, quando deitava pra dormir chegava até a pensar em casar. Imaginava seu vestido, o bolo, a festa, o salão repleto de violetas e Thiago de fraque preto lhe esperando no altar. Chegava a se arrepender das brigas e enquanto o observava dormindo no sofá colocava na cabeça que quando acordassem iriam conversar e resolver tudo.
Mas ao primeiro raiar de sol sua coragem se desfazia como fumaça e o despertador denunciava que as pré-rondas começariam em meia hora. Saía de casa e ignorava mais uma vez a voz dentro de sua cabeça que lhe dizia pra acordá-lo e dizer que lhe amava pedindo desculpas pelas brigas. Enterrava no fundo da alma a vontade de ir tomar café com a família e perguntar como estavam. Ignorava completamente o súbito desejo de pegar o celular e discar o número da melhor amiga – com quem tinha brigado por motivos infundados – pra marcar um almoço e fazerem as pazes para matar a saudade que lhe consumia.
Samantha não fez nada disso. Ignorou tudo que não cheirasse a éter ou tivesse correlação com a medicina. Achava que o trabalho lhe bastaria. Que se amasse o trabalho, se ganhasse muito dinheiro com ele, seria feliz. Esqueceu-se de que o dinheiro só compra acessórios de alegria momentânea.

Mas naquela noite, ao terminar o último ponto da sutura decidiu que ia mudar de uma vez por todas. Que seria mais benevolente, mais flexível, mas dócil. Saiu da sala de operações, se trocou e dirigiu até em casa. Teve uma desagradável surpresa quando abriu a porta do apartamento e viu que só restavam suas coisas e um bilhete sobre a mesa com a letra de Thiago explicando que eles não davam mais certo. Que não era aquilo que ele queria da vida apesar de muito lhe amar. Observou no canto esquerdo do papel uma letra machada. Supôs ser uma lágrima. Um sentimento ruim lhe arrebatou. Olhou pra cama recém-vazia do gato na varanda e se sentiu mais sozinha ainda.

Com os olhos marejados foi em direção à casa dos pais. O porteiro sem entender porquê ela estava ali comentou que eles tinham se mudado há quase um mês e que não sabia lhe dizer pra onde teriam ido.
Dirigiu pela cidade sem rumo algum. Encostou o carro em qualquer esquina, pegou o celular e ligou pra amiga. Sabia que apesar de tudo, ela iria relevar a briga, lhe perdoaria e daria carinho e colo pra chorar. O celular chamou duas vezes sem resposta alguma. Na terceira tentativa a voz irritada do outro lado da linha – sem lhe dar qualquer chance de falar algo primeiro – disse: Quando eu quis conversar, você não quis. Quando eu pedi desculpas você não aceitou. Quando eu precisei de você de verdade, você me ignorou e me abandonou. Não temos nada a conversar, Sam!

A chamada finalizou-se antes que ela sequer conseguisse balbuciar qualquer palavra em sua defesa.

O fio havia se arrebentado e isso abalou todo o resto do trabalho. Não havia pontos enlaçados para garantir a segurança ou facilitar o recomeço. Confiou nos pontos simples achando que eles suportariam a pressão, mas viu que todos os pontos haviam se rompido e sua ferida estava fragilmente exposta. Costurava sua trajetória com pontos simples pois só sabia fazer pontos reservas com a vida de outras pessoas.


Samantha soube da pior forma possível que ela passou a vida toda costurando sua vida com uma sutura simples ao invés de tecer uma sutura festonada.