sábado, 18 de setembro de 2010

A insônia, o gorila e a menina pensante.

Dormi a uma hora, acordei ás quatro da manhã e perdi o sono. Enrolei na cama, virei pra um lado, virei pro outro, diminuí a temperatura do ar condicionado, percorri todos os canais da tv a cabo, desliguei a tv, tentei contar carneiros, porcos, elefantes, zebras, girafas e até bichos-preguiça que quem sabe demorando a contar o sono voltasse a habitar minha pessoa. Mas não tivemos acordo e ele resolveu se mandar pro Acre.
Tentei fechar os olhinhos e disse a mim mesma: "Mim mesma, você não vai fazer isso. Não pense. Não seja petulante. Vai dormir. Agora! Valendo!"
Mas lá ao longe, atravessando o Rio Guamá a fortes remadas, eles vinham. Rompendo o céu paraense, passando todos os sinais vermelhos, se valendo de que a essa hora não tem trânsito nenhum, acelerando e furando todos os sinais vermelhos, eles vinham. Dobraram a esquina da minha alameda com a velocidade de avião, se espreitaram pela porta da sala, derrubaram a porta de meu quarto, se esgueirando por entre os móveis e esparramaram-se sobre a cama ao meu lado. Pronto, comecei a pensar. Droga.
Aí todo esforço foi por água abaixo e de repente os pensamentos mais diversos tomaram-me de assalto.
E sabe-se lá porquê, além do pensamento habitual e recorrente de uma determinada pessoa que ainda é uma lacuna em minha vida, lembrei que no depósito de casa tem uns pares de caixas onde estão guardadas lembranças da minha infância. Algumas roupas e sapatos que minha mãe guardou, uns livros e muitos brinquedos. Já doei uma grande parte, mas alguns ficaram porque tem histórias especiais.
Brinquedos que herdei, que ganhei de pessoas que já viraram estrelinha, brinquedos que economizei mesada o ano todo pra comprar, coisas que comprei em viagens. Tudo lembranças. Boas lembranças. Cogitei a possibilidade de talvez escolher uns poucos e doar o resto. Assim, limpo espaço em casa e proporciono a diversão de algumas crianças.
Lembrei que há uma caixa só de pelúcias que tem uma lembrança especíalissima. Foram conquistadas numa época boa.
Quem tem lá pelos seus 20 anos, ou que pelo menos viveu grande parte da sua infância nos anos noventa, vai lembrar da febre que foram as máquinas de pelúcia. Espalhadas em todos os cantos, sempre cheia de luzinhas e pelúcias bonitinhas, chamava a atenção de qualquer um. Eu, modéstia à parte, me tornei uma expert naquela máquina. Com o tempo, acabou virando hobby pra mim. No começo, conseguia levar a garra até o meio da máquina e me contentava com o que viesse. Depois, já com a devida perícia, eu escolhia o bichinho que queria e o conseguia em questão de segundos. Perto de casa tinha uma lojinha que tinha uma máquina dessas e foi aonde eu consegui a maior parte da minha coleção. Quando eu chegava a dona da loja já vinha me olhar pescar minhas pelúcias. Todo dia levava no mínimo umas cinco pra casa. Sem contar nas que pegava por pedidos de pessoas que ficavam às minhas costas olhando meu desempenho. Consegui pra mais de 200 bichinhos. Era um vício. Se fosse esporte, eu podia me inscrever em algum campeonato.
Mas lembro que apesar de conseguir várias pelúcias, um dia algo me desafiou. Como de costume, cheguei na loja, dei oi pra dona e pros funcionários, comprei umas fichas e fui me divertir. Quando no meio da máquina enxerguei uma pelúcia de um gorila. Ele não era bonito pra mais ninguém. Tinha cara de mal, era grande, preto, tinha uma banana em uma das mãos e estava preso no meio de um monte de outras pelúcias. A dona da loja me falou que mais cedo três pessoas tinham tentado tirá-lo e sem sucesso haviam desistido. Eu, teimosa do jeito que sou, enfiei na cabeça que eu queria aquele gorila. Tentei um monte de vezes e nada. Ele continuava lá. Me vinham até pelúcias que eu não queria e que acabei doando pra crianças que estavam me olhando e continuei tentando agarrar o gorila. Mas naquele dia tive que voltar pra casa sem ele. E assim a semana seguiu. Todos os dias, durante um mês inteirinho eu tentei pegar aquele gorila pra mim. Chegava a ter calafrios quando via alguém tentando, agarrando o gorila, a garra subindo, levando ele pra saída da máquina e de repente ele caía no meio dos outros bichinhos. Ufa! Respirava aliviada sabendo que ainda tinha chances. Um dia, cheguei para tentar mais uma vez pegar meu objeto de desejo. E em algumas poucas tentativas, consegui. Ele era meu. Não era um dia em que o sol estava mais brilhante ou o céu mais azul. Não chovia, nem tinha arco-íris. Não teve uma banda tocando aquela música do Ayrton Senna, nem estouro de fogos na rua. Ninguém veio me trazendo um buquê de flores, uma coroa de louro e me dando banho de champanhe. Pois ninguém ali, além de mim, sabia que o mundo tinha acabado de se tornar mais laranja, mais bonito e mais feliz. Eu era criança e tinha conseguido vencer um desafio. Eu queria muito uma coisa e me empenhei em consegui-la. Com meus poucos anos de estadia nessa vida, tinha aprendido uma lição importante sobre querer muito algo, tentar incansavelmente e conseguir.
Gostaria de saber em que momento da minha vida eu deixei essa lição de escanteio. Talvez ela estivesse na mesma caixa que o gorila e os outros bichinhos. O fato é que tenho que resgatar os dois. A lição e o gorila King.
Naquele dia, uma coisa torpe havia mudado muito de mim. Eu era uma criança mais madura. Já caminhando pra moldar a personalidade que tenho hoje. De tentar trocentas vezes, dar com a cara na porta o tempo todo, mas nunca desistir e aí, quem sabe, conseguir.
Saí da loja com várias pelúcias na mochila e o King na mão.
- Tchau, dona Socorro. Até amanhã!
- Parabéns, Anne. Vejo que você conseguiu seu macaquinho! Até amanhã!