quinta-feira, 10 de junho de 2010

Memória olfativa

Acordei com o canto dos passarinhos. Costumava achar isso lindo. Agora odeio. Deve ser porque antes eu acordava depois de 8 maravilhosas horas de sono. Agora esses bichos sequer me deixam dormir. Entre o último pensamento antes de dormir e agora que olho pro relógio noto que não cheguei a dormir nem 2 horas completas. Droga. Maldita insônia.

Levantei da cama e percebi que tem um buraco se formando no lado esquerdo. O meu lado. Isso só serve pra me deixar mais deprimida. Maldita indústria de colchões! Devem fazer isso conluiados com o capeta, só pode. O buraco no meu colchão parece gritar o quanto eu sou ridícula. Tenho vontade de jogar o colchão pela janela. Olho pela persiana e os raios de sol me cegam. Odeio o sol. Tô com preguiça. Vou ficar aqui quieta mesma. Eu a minha loucura e a minha insônia. As únicas coisas que não me largam.

Estou há 3 dias sem tomar banho. Tem pacotes de comida artificial por todos os lados da casa. Já engordei uns 5 kg pelo menos. Meu cabelo não vê nada além do combinado shampoo-e-condicionador há mais de um mês. Parece que um furacão devastador invadiu a minha sala. E ter demitido a empregada pra ficar na minha fossa solitária sem ser importunada, me parece agora a pior ideia dos últimos tempos.
Abri o armário e peguei o tubo de creme dental. Notei que estava vazio. Que raiva. Queria duendes mágicos na minha casa. Queria uma empregada-robô. Queria uma aia. Queria ser a feiticeira pra só mexer o nariz e tudo ficar como eu quero. Quero a minha mãe, é isso. Tenho 29 anos, minha própria casa, minha vida independente e quero a minha mãe só porque não tenho creme dental. Dane-se! Vou usar o enxaguatório bucal. Depois meu dentista resolve meus problemas odontológicos com super cremes dentais de tecnologia de ponta e aqueles aparatos futurísticos de luz azul.

A fome deu sinal de existência e na geladeira as únicas coisas próprias para consumo eram umas garrafas d’água, meio pote de nutella, duas cenouras, cinco latas de cerveja e uma caixa de leite de soja.
Nada disso era considerável palatável se misturado. Peguei uma cerveja, fechei a geladeira resmungando e decidi que ia ficar com fome mesmo. Passei a mão no pote de biscoitos que também estava vazio.
Droga! Alguém entrou aqui e roubou o meu creme dental, meu desodorante e minha comida! Que merda!
Mas não, não era isso. Essas coisas eu mesma tinha acabado. Ninguém roubaria nada disso de mim. Ele já havia me roubado meu amor e a sua presença naquela casa. Era por isso que eu não tinha mais nada. Porque ele era tudo. E se alguma coisa ali era mais vazia do que a minha despensa, com certeza era eu.

Fui tomar banho e no chuveiro vi que não tinha mais nada do meu sabonete líquido. Gosto dele porque cheira a morango. Procurei na prateleira de cima e havia o dele de chá verde. Era uma perfeita combinação, pois nossas peles tinham um casamento perfeito de aromas. Morango e chá verde. Na minha memória olfativa aquilo era sem dúvida a melhor coisa do mundo.
A última lembrança que eu tenho daquele cheiro foi quando ele foi embora e me deixou. Ele queria o que eu não podia dar. Ele queria o que eu não podia ser. Ele queria ir e eu queria ficar. Ele foi, eu fiquei.

Fiz a minha escolha. Decidi que não queria casamento, que não queria filhos. Que queria gastar todo meu dinheiro comigo. Decidi não vencer meu medo. Não arrisquei. Ele queria arriscar. Queria um bebê, queria me dar o seu sobrenome. Ele queria uma família. E eu queria manter meu corpo e a minha disponibilidade de viajar. Ele queria crianças correndo pela casa no almoço de domingo. Eu tremia de pavor só de pensar na dor do parto. Ele queria ter uma mulher pra chamar de esposa e eu só queria continuar como eu tava. Ele queria acordar de madrugada pra cuidar de um bebê. Eu queria poder mandar ele pra casa dele cada vez que a gente brigasse. Ele queria alianças de ouro maciço nos nossos dedos e eu preferia que ele nos comprasse uma viagem pela Europa. Ele queria comprar uma casa maior com piscina e playground. Eu só pensava em reformar o quartinho do depósito e fazer ali o meu escritório. Ele comprou um carro maior que tinha o banco de trás com o tamanho perfeito pra se instalar uma cadeirinha de criança. Eu comprei diamantes.

Naquela madrugada ele bateu a porta e se foi. E eu fiquei sozinha, chorando no chão da cozinha sentindo o cheiro marcante do morango enquanto o cheiro do chá verde se dissipava pelo ar.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Então Amsterdã aconteceu.

Era mês de férias e eu não tinha viajado. A cidade estava mais tranquila do que de costume. Sem filas no supermercado eu podia me concentrar completamente nas minhas finanças e podia ficar parada lendo quantos rótulos eu quisesse.

Estendi a mão e catei um desodorante pra mim. Lembrei do meu sabonete. Olhei de relance e vi que minha cera depilatória estava com preço em promoção. Mas pra que levar? Tem 3 meses que ninguém dá uma conferida lá na amiguinha. Fazer isso pra que? Me resolvo só com creme depilatório mesmo. Não vou ficar com a virilha coçando e com pelos encravados à toa.

No supermercado só tem uma coisa que odeio mais do que filas. É que na maioria das vezes o que eu quero sempre está na prateleira de baixo. Então estou eu lá pagando cofrinho procurando o único desinfetante com cheiro que me é agradável quando ouço alguém exclamar: Letícia!
Virei pra olhar e percebi que era a Malu. Uma velha conhecida nossa. Ou minha. Nem sei. Ainda estou num período de adaptação dessa minha nova “identidade”.

-Oi Malu! Tudo bom?
-Tudo! E com você?
-Bem.

Isso não ia prestar. Queria ter o dom de bloquear pessoas ao vivo. Ou estar ali com status invisível. Mas não podia fazer nada a não ser torcer pra que ela não fizesse a cruel pergunta. Toda a minha fé se voltou no pedido mental de que ela não pronunciasse aquelas letras. Que aquele nome não saísse pela boca dela.

-E então, cadê a Fernanda?

Silêncio sepulcral. Me senti aquele esquilo da Era do gelo. Era como se eu estivesse dentro de um bloco de gelo. Congelada. Estática. Queria ter um ataque cardíaco ali naquela hora. Cair estatelada no chão como numa cena de novela mexicana. Sem falar nada. Olhos esbugalhados, uma tez pálida, a jugular pulando. Só desabar no chão como um prédio desaba quando é demolido. Queria uma nave espacial me abduzindo com seu néon verde. Queria um furacão no meio do corredor de produtos de limpeza. Queria uns terroristas da Al Qaeda correndo na minha direção e me arrastando dali. Queria exatamente tudo pra sumir da frente dela sem ter que responder àquela pergunta.

- Ah ela... é... hum... ela viajou.
-Tá viajando, é? Pra onde? Quando ela volta? Vamos marcar alguma coisa. O Beto comprou um sítio no interior. Seria ótimo fazer um churrasco lá qualquer dia desses.

Meu Deus que mulher burra! Falei “viajou”. Passado. Pretérito do verbo se foi, não volta mais, levou o meu cachorro e deixou a conta do condomínio pra eu pagar. Só isso.

-Não Malu, a Fê viajou. Sem planos de volta. Ela tá morando em Amsterdã agora.
- Então vocês... Err... Vocês...

Ela emudeceu. Como eu emudeci quando constatei a mesma coisa. Respondemos igual. Faltam as palavras quando você vê que uma história de amor terminou. Tudo o que resta é o silêncio. Ela levou o som da sala, levou sua TV, levou nosso cachorro. Era tudo dela. Tudo comprado com o dinheiro dela. Não tinha mais música tocando enquanto eu passava roupa, não tinha mais os latidos do pequeno Luke aos meus pés sentindo cheiro da comida na cozinha, eu só assistia novela no meu quarto onde ficava a minha TV porque o lugar da outra na sala espera até hoje pra ser preenchido por um quadro. Ou outra TV. Por hora não tem nada lá porque eu não tenho colo de ninguém pra deitar no sofá.

-Pois é Malu. É isso. Acabou.
-Como assim, Letícia? Acabou assim do nada?
-Do nada não. Deu certo por 5 anos. Mas aí essas coisas acontecem.
-Eu sei. Mas me fala de você. Como você tá com tudo isso?
- Ah foi melhor assim. Foi melhor pras duas. A vida segue, né?

Respondi mais 3 frases memorizadas da pilha de livros de auto-ajuda que andei lendo. Só queria que ela parasse de falar naquele assunto. Depois de alguns minutos de tortura psicológica, nos despedimos. E Malu falou “Fica bem!”

Eu estava era bem acabada. Bem era uma palavra que não existia no meu dicionário naquele momento. Eu não estava bem depois de tudo aquilo. Tomei um monte de calmantes, chorei direto durante dias. Faltava ao trabalho porque enchia a cara de vodca, comia batata frita no café, pizza no almoço e sorvete no jantar. Tinha coisas entaladas. Queria ter mandado ela a lugares feios, queria ter jogado suas roupas pela janela. Havia noites que sonhava com isso. Ela na porta de casa gritando pra mim e eu jogando os Pradas dela lá no meio do asfalto. Jogando seu celular no vaso sanitário e dando descarga. Quebrando todos os vidros do carro dela com o meu rolo de macarrão como naqueles filmes italianos. Imaginei meus pratos de porcelana chinesa voando pela sala como discos de frescobol acertando a parede, os móveis, a maldita TV dela.

Quis voar por horas, podia quase congelar na gélida Amsterdã mas queria jogar um balde de água nela enquanto ela estivesse fazendo chapinha. Queria sequestrar o cachorro de volta. Queria roubar o seu Ipod e dá-lo pra um mendigo na rua. Queria destruir todos os arquivos do laptop. Queria gritar na rua, no meu holandês enrolado que eu a odiava. Queria plantar drogas na mala dela. Queria processá-la. Queria extraditá-la de volta pro Brasil. Queria. Não fiz!

Pelo contrário, saí do supermercado, voltei pra casa, guardei as compras e fui pro salão me presentear com um dia de beleza. Saí com o cabelo de cor e corte diferente. Me depilei, fiz as unhas, vários tratamentos estéticos. Saí transpirando superação e com uma aparência de atriz de Hollywood.

Decidi que daria volta por cima. Saí na rua com uma particular missão de arranjar um novo amor. Poderia até virar hetero. Entrei na cafeteria e pedi um capuccino. Um rapaz encostou no balcão, sorriu pra mim e deu uma piscadela. Pediu um café e uma fatia de torta holandesa.

Droga. Odeio os homens!