quinta-feira, 3 de junho de 2010

Então Amsterdã aconteceu.

Era mês de férias e eu não tinha viajado. A cidade estava mais tranquila do que de costume. Sem filas no supermercado eu podia me concentrar completamente nas minhas finanças e podia ficar parada lendo quantos rótulos eu quisesse.

Estendi a mão e catei um desodorante pra mim. Lembrei do meu sabonete. Olhei de relance e vi que minha cera depilatória estava com preço em promoção. Mas pra que levar? Tem 3 meses que ninguém dá uma conferida lá na amiguinha. Fazer isso pra que? Me resolvo só com creme depilatório mesmo. Não vou ficar com a virilha coçando e com pelos encravados à toa.

No supermercado só tem uma coisa que odeio mais do que filas. É que na maioria das vezes o que eu quero sempre está na prateleira de baixo. Então estou eu lá pagando cofrinho procurando o único desinfetante com cheiro que me é agradável quando ouço alguém exclamar: Letícia!
Virei pra olhar e percebi que era a Malu. Uma velha conhecida nossa. Ou minha. Nem sei. Ainda estou num período de adaptação dessa minha nova “identidade”.

-Oi Malu! Tudo bom?
-Tudo! E com você?
-Bem.

Isso não ia prestar. Queria ter o dom de bloquear pessoas ao vivo. Ou estar ali com status invisível. Mas não podia fazer nada a não ser torcer pra que ela não fizesse a cruel pergunta. Toda a minha fé se voltou no pedido mental de que ela não pronunciasse aquelas letras. Que aquele nome não saísse pela boca dela.

-E então, cadê a Fernanda?

Silêncio sepulcral. Me senti aquele esquilo da Era do gelo. Era como se eu estivesse dentro de um bloco de gelo. Congelada. Estática. Queria ter um ataque cardíaco ali naquela hora. Cair estatelada no chão como numa cena de novela mexicana. Sem falar nada. Olhos esbugalhados, uma tez pálida, a jugular pulando. Só desabar no chão como um prédio desaba quando é demolido. Queria uma nave espacial me abduzindo com seu néon verde. Queria um furacão no meio do corredor de produtos de limpeza. Queria uns terroristas da Al Qaeda correndo na minha direção e me arrastando dali. Queria exatamente tudo pra sumir da frente dela sem ter que responder àquela pergunta.

- Ah ela... é... hum... ela viajou.
-Tá viajando, é? Pra onde? Quando ela volta? Vamos marcar alguma coisa. O Beto comprou um sítio no interior. Seria ótimo fazer um churrasco lá qualquer dia desses.

Meu Deus que mulher burra! Falei “viajou”. Passado. Pretérito do verbo se foi, não volta mais, levou o meu cachorro e deixou a conta do condomínio pra eu pagar. Só isso.

-Não Malu, a Fê viajou. Sem planos de volta. Ela tá morando em Amsterdã agora.
- Então vocês... Err... Vocês...

Ela emudeceu. Como eu emudeci quando constatei a mesma coisa. Respondemos igual. Faltam as palavras quando você vê que uma história de amor terminou. Tudo o que resta é o silêncio. Ela levou o som da sala, levou sua TV, levou nosso cachorro. Era tudo dela. Tudo comprado com o dinheiro dela. Não tinha mais música tocando enquanto eu passava roupa, não tinha mais os latidos do pequeno Luke aos meus pés sentindo cheiro da comida na cozinha, eu só assistia novela no meu quarto onde ficava a minha TV porque o lugar da outra na sala espera até hoje pra ser preenchido por um quadro. Ou outra TV. Por hora não tem nada lá porque eu não tenho colo de ninguém pra deitar no sofá.

-Pois é Malu. É isso. Acabou.
-Como assim, Letícia? Acabou assim do nada?
-Do nada não. Deu certo por 5 anos. Mas aí essas coisas acontecem.
-Eu sei. Mas me fala de você. Como você tá com tudo isso?
- Ah foi melhor assim. Foi melhor pras duas. A vida segue, né?

Respondi mais 3 frases memorizadas da pilha de livros de auto-ajuda que andei lendo. Só queria que ela parasse de falar naquele assunto. Depois de alguns minutos de tortura psicológica, nos despedimos. E Malu falou “Fica bem!”

Eu estava era bem acabada. Bem era uma palavra que não existia no meu dicionário naquele momento. Eu não estava bem depois de tudo aquilo. Tomei um monte de calmantes, chorei direto durante dias. Faltava ao trabalho porque enchia a cara de vodca, comia batata frita no café, pizza no almoço e sorvete no jantar. Tinha coisas entaladas. Queria ter mandado ela a lugares feios, queria ter jogado suas roupas pela janela. Havia noites que sonhava com isso. Ela na porta de casa gritando pra mim e eu jogando os Pradas dela lá no meio do asfalto. Jogando seu celular no vaso sanitário e dando descarga. Quebrando todos os vidros do carro dela com o meu rolo de macarrão como naqueles filmes italianos. Imaginei meus pratos de porcelana chinesa voando pela sala como discos de frescobol acertando a parede, os móveis, a maldita TV dela.

Quis voar por horas, podia quase congelar na gélida Amsterdã mas queria jogar um balde de água nela enquanto ela estivesse fazendo chapinha. Queria sequestrar o cachorro de volta. Queria roubar o seu Ipod e dá-lo pra um mendigo na rua. Queria destruir todos os arquivos do laptop. Queria gritar na rua, no meu holandês enrolado que eu a odiava. Queria plantar drogas na mala dela. Queria processá-la. Queria extraditá-la de volta pro Brasil. Queria. Não fiz!

Pelo contrário, saí do supermercado, voltei pra casa, guardei as compras e fui pro salão me presentear com um dia de beleza. Saí com o cabelo de cor e corte diferente. Me depilei, fiz as unhas, vários tratamentos estéticos. Saí transpirando superação e com uma aparência de atriz de Hollywood.

Decidi que daria volta por cima. Saí na rua com uma particular missão de arranjar um novo amor. Poderia até virar hetero. Entrei na cafeteria e pedi um capuccino. Um rapaz encostou no balcão, sorriu pra mim e deu uma piscadela. Pediu um café e uma fatia de torta holandesa.

Droga. Odeio os homens!

domingo, 30 de maio de 2010

Vazio.

Minha cabeleireira me encontrou na padaria e perguntou quando ia aparecer por lá pelo salão dela essa semana. Tive vontade de dizer “nunca”, mas meu restinho de sociabilidade me permitiu sorrir amarelo e responder “Logo mais. Rotina. Trabalho. Muito!”
Quando ela se afastou percebi que dei uma resposta quase “tuitada”. Idéia geral em menos de 140 caracteres. Não consigo mais nem montar frases claras.
Na hora de fazer meu pedido um ato falho me acometeu e acabei pedindo 10 pães franceses, 200g de pão de queijo, um vidro de requeijão, 300g de queijo prato, 300g de presunto e um garrafa grande de suco de uva. O que geralmente pedia e durava por 2 dias. Paguei minhas compras no caixa e no caminho de casa me ocorreu: quem comeria tudo aquilo?

Me deu vontade de pegar as sacolas e ir pro aeroporto. Pegar o primeiro voo que tivesse e viajar por duas horas pra tomar café com os meus pais. Mas seria muita loucura. E eu tinha que trabalhar mais tarde.

Tomei café sozinha. Estava sozinha. Era sozinha. O tempo passava e eu continuava sozinha. Só uma xícara de café, só um sanduiche, só dois pães de queijo, só um copo de suco. Só. E eu também, só.

Uma semana antes, quando cheguei em casa ela ainda não havia chego. Fui tomar banho e como se meu sexto sentido me cutucasse pra mostrar algo, olhei pro balcão e o perfume dela não estava ali. Tentei não bancar a paranoica. Mas já podia prever que alguma coisa estava acontecendo. Ela já estava estranha há semanas. Mas nunca falava nada. Quando eu perguntava o que ela tinha ela só respondia “nada.” E assim a vida seguia.

Mas naquele dia, depois do banho ela me esperava sentada na cama, chaves e bolsa nas mãos. Vesti o roupão e fui lhe dar um beijo. Ela virou o rosto e me afastou com o antebraço.
-Temos que conversar, Luana. Preciso ser honesta com você.
-O que foi, amor? O que aconteceu?
-Estou indo embora. Nós não damos mais certo. Não consigo mais fazer isso. Me sinto presa, sufocada, acorrentada. Vou viajar. Consegui uma bolsa de estudos pra fazer meu doutorado em Yale.
-Bolsa de estudos? Você subornou alguém lá dentro? Pelo que eu saiba essas coisas demandam tempo. Um teste prévio.
-Eu fiz a prova no ano passado.
-E quando planejava me contar isso? No meu aniversário de 80 anos?
-Só quero ser honesta com você. Eu te amo, mas isso não funciona mais...
-Isso? Nós, você quer dizer, né? Quanta amabilidade. Seu amor e sua sinceridade são tocantes, minha cara!
-Odeio esse seu jeito irônico. Isso me irrita muito!
-Eu também odeio seu jeito de fugir de tudo e se trancar no seu mundo impenetrável e expulsar qualquer pessoa que te dê um pouquinho de amor. Mas por nós, eu aturei isso todos esses anos! Por você!
-Não torne as coisas mais difíceis pra gente.
-Você é quem fez ficar pior. Podia ter saído sem se despedir. Você sempre foge de tudo mesmo...
-Eu tinha que conversar com você e explicar tudo.
-Explicar o quê, mulher?! Que você está mais uma vez chutando a minha bunda e me colocando pra fora da sua vida? Você fez isso há anos atrás e está fazendo isso agora novamente. Na sua segunda chance. Vai embora mesmo. Você nunca me amou. Faça isso logo de uma vez!

Ela se calou. Imóvel na beira da cama. Talvez por não esperar que aquela fosse minha reação. Ininteligivelmente eu não derramei uma lágrima sequer na sua frente. Dei-lhe as costas e fui pentear meus cabelos no banheiro.

-Nós podemos continuar amigas. Não há por que ter brigas, ou choros. Ninguém precisa se machucar aqui...
-Você ainda está aí? Quer dinheiro para o táxi?

Depois de exatas 12 escovadas que me arrancaram alguns fios de cabelo eu ouvi a porta bater. Corri pra sala com uma vã esperança de que suas malas continuassem ali. Que suas chaves estivessem penduradas no porta-chaves de florzinhas. Não estava. Nada mais estava ali. Suas roupas não estavam mais no guarda-roupa. Havia um espaço vazio na estante de livros, havia o espaço do perfume no balcão, os quadros de fotos, da TV da sala. Só ficaram espaços vazios. A minha cama vazia. E eu, completamente vazia.

Deitei no sofá sem nem saber o que sentir. Havia sido novamente abandonada. Minha cabeça girava tentando digerir tudo aquilo. Tudo vazio.

O telefone tocou. Mediante meu “alô” quase afônico, do outro lado ouvi um português empenhado com traços marcantes de inglês, me perguntar:

-Por favor, poderia falar com a senhora Talita Martins?
-Ela foi pro inferno, meu senhor. Pro inferno!!!




sábado, 29 de maio de 2010

A importância da aposição*

*Na Medicina as suturas cirúrgicas contínuas tem uma subdivisão em relação à aparência e a aposição visa a união entre as bordas do tecido no mesmo plano.


Depois de 7 horas de cirurgia, Samantha dava o último ponto da sutura no paciente e sentia que enfim poderia ir pra casa descansar. Ultimamente tinha feito muitos plantões além do seu horário habitual. Se tornar atendente cirúrgica era seu maior sonho desde o ingresso na escola de Medicina. Há 6 meses seu sonho enfim tornara-se realidade. A carga de trabalho havia aumentado de forma que todos a sua volta perguntavam-se como ela dava conta da rotina atribulada. Passava horas sem dormir. Chegava a dobrar plantões. Atendia emergências e cirurgias eletivas.

Tudo que ela queria era manter-se o máximo de tempo possível na sala de operações onde encontrava paz e sossego. Onde tinha o controle de tudo em suas mãos pelo menos no tempo que decorria cada cirurgia.
Cirurgiões gostam de controlar, gostam de comandar a situação, se sentem deuses invencíveis. Samantha não baixava a cabeça, não ficava calada quando algum colega questionava sua escolha cirúrgica, dificilmente acatava sugestões sobre que tipo de técnica utilizar. Estava em estudo constante sempre buscando novidades em tratamentos. Era antenada com os avanços da medicina e gostava de ganhar destaque por isso. Sentia um prazer incomensurável cada vez que atendia um paciente que lhe dizia "Recebi as melhores indicações sobre você, doutora. Me disseram que você é a melhor".
Ela era a melhor na sua área. Sabia disso. Mas só tinha essa certeza na vida. Pois sua profissão era a única coisa que desempenhava impecavelmente.
Quando finalizava a cirurgia ficou pensando em que ponto utilizaria na síntese da pele. Tinha de fazer uma sutura contínua, mas sabia que a simples não era uma boa escolha a ser usada naquela área já que o tecido seria submetido à tensão. Precisava usar um ponto que propiciasse maior segurança.

Usou então uma sutura contínua festonada em que a cada passagem através dos tecidos o fio une-se ao ponto passado anterior garantindo assim que cada ponto tenha ponto reserva que garante a estruturação da sutura. Apesar de esta técnica ter um maior dispêndio de tempo e de material a escolheu porque a grande vantagem é a notável estabilidade na eventualidade da falha de um nó ou pedaço da linha. Quando isto ocorre não causa perda de toda a sutura. Além de que, o tecido apresentaria uma tendência mínima a movimentar-se e com isso abalar o processo de cicatrização.

Na casa dos pais todos testavam sua paciência ao falar todo dia sobre o estilo de vida que ela estava levando. Estava cansada de ser criticada por sua escolha. A mãe mandava que ela tirasse mais folgas, o pai dizia que a qualquer hora ela desmaiaria de cansaço. O irmão empenhava-se num mantra que vinha desde a preocupação com a sua saúde até a crítica de que ela estaria "passando do ponto" de casar.

Certo dia fez as malas, bateu a porta da sala gritando que não precisava de ninguém ali pra controlar sua vida e saiu de casa. Foi morar com o namorado pra livrar-se das conversas familiares. Brigava com todos, sofria calada, chorava no chuveiro. Sabia que seu jeito de ser não era dos melhores e mais agradáveis, mas não se empenhava em melhorar. Bradava a plenos pulmões que era assim mesmo e quem não gostasse que ela só lamentava porque não iria mudar pra agradar ninguém. No fundo, Samantha sabia que não mudava por sua própria incompetência. Sabia que era ela e tão somente ela quem sabotava todas as suas relações afetivas.
Foi seu orgulho que lhe fez perder amigos, namorados, o carinho da família. Até o gato tinha morrido de depressão depois do abandono dela. Samantha não gostava da vida que levava. O trabalho nada mais era do que uma fuga da sua realidade. Nada que ela fazia dava certo. Nenhum namoro sobrevivia há um ano. Ela de fato, só tinha o trabalho. Era o que lhe dava forças pra continuar vivendo embora esse não fosse seu maior desejo em muitos momentos.
Mas passados 4 meses que morava com o namorado a situação da casa dos pais se repetia. Ele reclamava de sua ausência. Passavam dias sem se falar pois seus horários de entrada e saída em casa não mais se conciliavam. Jantares eram adiados, programas com amigos eram cancelados em cima da hora, o namorado ia sozinho aos aniversários dos parentes, os almoços de domingo eram interrompidos pelas chamadas de emergência do hospital. Não havia folgas, não havia férias. Os pacientes vinham em primeiro lugar. Esquecia-se de priorizar quem a amava. Preferia manter relações com pessoas distantes de sua realidade do que envolver-se a fundo com as que estavam a seu redor.

O namorado começava a brigar e Samantha não tinha paciência então gritava sempre sua frase pré-definida “Eu sou assim mesmo. Se você não gosta de mim então vá embora”. Mas falava aquilo da boca pra fora porque sabia que ele sempre lhe perdoava no fim das contas.
As vezes, não raro, quando deitava pra dormir chegava até a pensar em casar. Imaginava seu vestido, o bolo, a festa, o salão repleto de violetas e Thiago de fraque preto lhe esperando no altar. Chegava a se arrepender das brigas e enquanto o observava dormindo no sofá colocava na cabeça que quando acordassem iriam conversar e resolver tudo.
Mas ao primeiro raiar de sol sua coragem se desfazia como fumaça e o despertador denunciava que as pré-rondas começariam em meia hora. Saía de casa e ignorava mais uma vez a voz dentro de sua cabeça que lhe dizia pra acordá-lo e dizer que lhe amava pedindo desculpas pelas brigas. Enterrava no fundo da alma a vontade de ir tomar café com a família e perguntar como estavam. Ignorava completamente o súbito desejo de pegar o celular e discar o número da melhor amiga – com quem tinha brigado por motivos infundados – pra marcar um almoço e fazerem as pazes para matar a saudade que lhe consumia.
Samantha não fez nada disso. Ignorou tudo que não cheirasse a éter ou tivesse correlação com a medicina. Achava que o trabalho lhe bastaria. Que se amasse o trabalho, se ganhasse muito dinheiro com ele, seria feliz. Esqueceu-se de que o dinheiro só compra acessórios de alegria momentânea.

Mas naquela noite, ao terminar o último ponto da sutura decidiu que ia mudar de uma vez por todas. Que seria mais benevolente, mais flexível, mas dócil. Saiu da sala de operações, se trocou e dirigiu até em casa. Teve uma desagradável surpresa quando abriu a porta do apartamento e viu que só restavam suas coisas e um bilhete sobre a mesa com a letra de Thiago explicando que eles não davam mais certo. Que não era aquilo que ele queria da vida apesar de muito lhe amar. Observou no canto esquerdo do papel uma letra machada. Supôs ser uma lágrima. Um sentimento ruim lhe arrebatou. Olhou pra cama recém-vazia do gato na varanda e se sentiu mais sozinha ainda.

Com os olhos marejados foi em direção à casa dos pais. O porteiro sem entender porquê ela estava ali comentou que eles tinham se mudado há quase um mês e que não sabia lhe dizer pra onde teriam ido.
Dirigiu pela cidade sem rumo algum. Encostou o carro em qualquer esquina, pegou o celular e ligou pra amiga. Sabia que apesar de tudo, ela iria relevar a briga, lhe perdoaria e daria carinho e colo pra chorar. O celular chamou duas vezes sem resposta alguma. Na terceira tentativa a voz irritada do outro lado da linha – sem lhe dar qualquer chance de falar algo primeiro – disse: Quando eu quis conversar, você não quis. Quando eu pedi desculpas você não aceitou. Quando eu precisei de você de verdade, você me ignorou e me abandonou. Não temos nada a conversar, Sam!

A chamada finalizou-se antes que ela sequer conseguisse balbuciar qualquer palavra em sua defesa.

O fio havia se arrebentado e isso abalou todo o resto do trabalho. Não havia pontos enlaçados para garantir a segurança ou facilitar o recomeço. Confiou nos pontos simples achando que eles suportariam a pressão, mas viu que todos os pontos haviam se rompido e sua ferida estava fragilmente exposta. Costurava sua trajetória com pontos simples pois só sabia fazer pontos reservas com a vida de outras pessoas.


Samantha soube da pior forma possível que ela passou a vida toda costurando sua vida com uma sutura simples ao invés de tecer uma sutura festonada.


sexta-feira, 3 de julho de 2009

Insight

Há três anos eu fazia terapia.
Porque eu sentia que precisava da ajuda de um profissional que me ajudasse a "consertar" a minha cabeça que andava meio confusa.
Depois de um ano e alguns meses, tive que interromper meu tratamento por que minha terapeuta mudou de cidade.

Passei os últimos dois anos, achando que não precisava mais de terapia, nem dos remédios nem nada do tratamento pro meu transtorno bipolar.
Ledo engano.
A pior parte de um tratamento é quando você não tem o insight. Ou seja, o que a psicologia define como percepção.
Então você está em negação, que Freud explica com um dos mecanismos de defesa do nosso aparelho psíquico.
Algo que te faz mal, te causa dor. Então você não aceita que aquilo esteja acontecendo.
E isso funciona, por um lapso de tempo.
Mas quando a negação acaba você tem a real noção da dimensão daquele problema, e a dor parece triplicar.
É atormentador quando isto ocorre.

Então, depois de três anos de negação, eu caí na real e voltei pra terapia.
Mas mesmo mantendo a rotina de psicólogos desde a pré-escola, eu nunca tinha entendido qual o real sentido de ficar uma hora olhando pra cara de uma pessoa desconhecida e contar o que está se passando comigo.
Achava que eu podia fazer isso com qualquer amigo, com a minha mãe, com a minha cadela.
Afinal, eu só precisava de um ouvido que aturasse ouvir os acontecimentos que de alguma forma me abalavam.
Mas hoje, por motivos de força maior mesmo que eu nem tenha conseguido me consultar com a minha terapeuta, eu tive o meu insight e enfim percebi a função da psicoterapia.

Vivemos em um mundo em que a conversa é cada vez menos valorizada. Deixa-se tudo muito subentendido.
Falo isso por experiência própria.
Eu tenho muita dificuldade em conversar com as pessoas.
Falo muito. Sobre política, economia, justiça, psicologia, sociedade, culinária, ouço problemas de amigos, aconselho, dou dicas de beleza... Mas conversar tem uma conotação mais profunda.
Mesmo o amigo mais íntimo, mesmo a amiga pra quem contei da minha primeira vez, do meu primeiro piercing, mesmo o amigo pra quem liguei e pedi abrigo quando saí de casa, mesmo todos eles sabendo muito de mim, definitivamente, não sabem tudo de mim.
Tem coisas que nem eu mesma sei colocar pra fora.
Porque apesar de falar muito, eu não sei expressar fielmente.
E aí é que entra a terapia. Pra ajudar a descobrir como me descobrir. Como me conhecer melhor.
E como ninguém é uma ilha, como ninguém consegue viver inteiramente só, eu precisei de pessoas estranhas, que não me julgariam, nem me repreenderiam, pra contar como eu me sinto a respeito disso.
Aliás, eu achava uma palhaçada pagar alguém que fica o tempo todo me perguntando "Como você se sente a respeito disso?" cada vez que eu contava um acontecimento diferente.
Sim, é preciso ficar repetindo a mesma pergunta para que eu saiba e diga como me sinto e como saber lidar com aquilo.
Quero respostas, e para tê-las preciso formular perguntas. Então preciso saber como isso afeta minha mente e minha vida para saber como proceder.

E por não conseguir expressar meus sentimentos, é que agora que acabou a minha negação e eu tive meu insight, me sinto completamente triste e perdida no mundo quando lembro que estou perdendo uma pessoa da qual eu me esqueci de dizer de fato, que a amava e sempre a amei profundamente. Tudo pela péssima mania de deixar as coisas subentendidas.

Eu simplesmente deixei nas entrelinhas por 20 anos o quanto eu amava a minha avó, e agora no seu leito de morte eu percebi que não lembrei de dizer aquelas três palavrinhas de peso enorme e vasto significado.

Que pena não ter o poder de voltar no tempo!

domingo, 14 de junho de 2009

Eu não sei o que sentir...

Quando se tem 20 anos de idade, você vive sob a expectativa de que cada manhã é um dia a mais pra ser vivido.
Quando se tem 80 anos, a perspectiva é que é um dia a menos no tempo que resta a ser vivido na terra.

Dizem que só damos valor às pessoas e coisas quando as perdemos, ou pelo menos, quando sabemos que estamos prestes a perder.
O fato é que quando sabemos que vamos perder uma pessoa querida, sabemos que é a lei da vida. Mas por mais que você seja uma rocha inabalável, uma hora você vai ruir. E quando essa hora chega você chora, surta, se questiona, questiona Deus, questiona a medicina.
Nascemos, crescemos e morremos. Essa é a lei divina.
Eu vivo dizendo que Deus empresta as pessoas umas às outras. Somos todos Dele. Mas aqueles com quem mantemos uma relação socioafetiva são mandados à terra e depois de cumprida sua missão, tem de voltar a Ele. Nós também somos assim.
Tenho pensado na morte. No poder desestruturante que ela exerce sobre mim, sobre nós, sobre as pessoas das minhas relações socioafetivas. Tenho pensado até na minha morte. Não de um jeito que sempre pensei.
Medo não é a palavra mais próxima. Ou talvez seja. Quando temos medo é porque ainda temos algo a perder. Ouvi isso num episódio de Grey's Anatomy e isso tá na minha mente pelas últimas 24h.
Mas tenho pensado que mesmo que você esteja com 20 ou 80 anos, e seja a morte um fato esperado ou simplesmente uma surpresa desagradável, de uma forma ou outra, a perda que os entes queridos sentem é exclusivamente ligada ao fato de que todo costume retirado de súbito é extremamente doloroso.
É difícil de repente, estar num ambiente que outrora foi utilizado pela pessoa que agora não está mais em nosso convívio. Essa convivência pode ter durado 80 ou 20 anos, mas é dolorosa do mesmo jeito.
E é complicado viver mais 20 anos ou viver até os 80 sempre com aquela pontadinha de dor no coração cada vez que você lembra o porquê dessa saudade doer tanto.
Dia desses, li que saudade é o amor que fica. E se fica é porque foi verdadeiro. Verdadeiro o bastante pra ter sobrevivido ao tempo.
“Saudade dói mas não mata”. Eu também vivia dizendo isso. Até hoje.
Pode até não matar, mas com certeza nos mantém agonizando até o fim dos nossos dias.

Acho que agora sim, estou com medo de sentir saudades...

sábado, 23 de maio de 2009

Craniotomia jornalística

Mais uma vez, eu deveria estar estudando e escrevendo alguma coisa de útil pro meu Projeto Interdisciplinar de Psicologia e DAF no qual deveria escrever sobre Violência e Terrorismo em relação à Ética do Advogado.

Fiquei horas olhando pra minha tela. Escrevi, apaguei, escrevi, apaguei, escrevi.
Não, não tava bom. Apaguei de novo.
Eu simplesmente adoro escrever, mas esses tempos eu não tô rendendo muita coisa.

Enfim, depois de assistir uma aula de Psicologia Forense e debater a questão da Violência, das causas de agressão e avaliar os dados estatísticos da violência no Brasil e no mundo, pensei eu que poderia escrever algo. Só que a cabeça realmente não tá ajudando muito.

Mas vou dizer o que eu acho da violência hoje em dia.
Divergindo fervorosamente da minha professora de Psicologia, acredito sim, que todos nascemos com um potencial agressivo. Mas as nossas experiências de vida é que vão definir a que ponto esse potencial irá evoluir.
A prova disso é que tem aqueles dias que o sentido de "Que vontade de matar fulano" sai um pouco do enredo literal e assume uma conotação um pouco mais preocupante.
Aula de Psicologia grátis: Segundo Freud, nosso aparelho psíquico é estruturado em 3 partes. O ID, o Ego e o Superego.

O ID é regido pelo princípio da satisfação imediata do prazer.
O Superego é responsável pela censura extrema dos nossos desejos, pois é regido pelo princípio da realidade.
Já o Ego assume a postura de mediador entre os dois supracitados e busca resolver o impasse existente quando há o confronto entre o desejo e a repreensão de não atendê-lo.

A agressão é a ação humana cercada de intencionalidade de ferir, magoar ou lesar outrem.


Enfim, a explicação psico-orgânica da violência está no fato de que então o indivíduo agressor tem problema na harmonia entre as 3 estruturas do seu aparelho psíquico.
Mas então como explicar a propagação da violência? Mídia!
A mídia e o seu sensacionalismo barato.

Falando exclusivamente da imprensa na minha cidade, posso dizer que perdem muito tempo pensando em ganhar cada vez mais dinheiro e se esquecem de divulgar coisas mais interessantes que de fato ajudariam a manter a sociedade devidamente informada.
Não é segredo pra ninguém que os cadernos policias de jornais paraenses mostram a verdade nua e crua dos crimes ocorridos nesta região.
E não é incomum ver fotografias mostrando vísceras sobre calçadas, ou corpos envoltos em poças de sangue, sempre com a multidão por perto feito urubu sobrevoando a carniça.
Eu sei que muitos casos ali retratados são de meliantes que morreram por acertos de contas com a polícia, a sociedade ou por outros meliantes. E lógico que eu defendo a dignidade deles, afinal, são pessoas detentoras de direitos e deveres como qualquer outra, mas em algum momento deturparam suas condutas e se tornaram uma ameaça a boa convivência social.
Então porque um jornal pode estampar a imagem de uma pessoa como se fosse uma coisa banal? Onde fica o respeito com os mortos? Ou só porque a capacidade civil se encerra com a morte, acha-se no direito de veicular a imagem sem respeitar a memória da família?
E aí então que a violência ganha forças e se enraíza na sociedade.

Dados antropológicos revelam que não exista nenhuma sociedade no mundo que esteja livre da violência. Mas como temos sensibilidades jurídicas diferentes, em muitas o conceito de crime varia. Em algumas sociedades africanas é prática corriqueira extirpar o clitóris das mulheres que atingem a maturação sexual para que as mesmas não tenham nenhum um tipo de prazer no ato sexual que pra eles é visto com o intuito único de procriação.
Já em algumas sociedades asiáticas, o filho varão é superestimado, o que resulta na morte de inocentes meninas, depois ou até mesmo antes do fim da gestação.
E aqui na nossa cultura? Aborto e infanticídio são crimes, assim como a multilação clitoriana.
Mas somos diferentes, somos multiculturais.

E deveríamos nos sentir os melhores? Não!
Em alguns pontos, somos mais humanos, já que vivemos num Estado Democrático de Direito e portanto, primamos pelo bem comum.
Mas por outro lado, essa democracia saiu do controle de nossas mãos, representadas pelas mãos dos nossos governantes.
Fala-se em voltar à época da Ditadura. Mas não nos esqueçamos que a Ditadura repreendia o direito à informação, expressão e desenvolvimento intelecto-cultural das pessoas. Direitos estes, previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na nossa Constituição Federal.

O fato é que a mídia acaba sendo uma faca de dois gumes. Ela passa sim muita informação útil. Tanto que quando uma nova lei que beneficia uma grande parte da sociedade é aprovada e entra em vigor, ela é amplamente divulgada, assim como campanhas de conscientização de cidadania.
Mas não podemos fazer vista grossa e ignorar que os jornais falam e mostram mais violência do que boas notícias.
Eu inclusive já até escrevi sobre o reality show dos horrores que a Globo sempre transmite. E ampliando mais o olhar, até os desenhos animados assistidos por nossas crianças impõe a violência desde cedo. Estamos acostumados com os super-heróis que matam e ficam impunes porque agem em defesa dos oprimidos. Desde quando é certo ensinar a uma criança que é aceitável que ela faça justiça com suas próprias mãos?
Agora que eu cresci e entrei pro mundo jurídico, não consigo ver nada além de homicídios qualificados nesses casos hipotéticos. Não cabe nem legítima defesa na maioria.
E por falar em crianças, eu não gosto de qualquer uma. Na verdade, só das que considero meus sobrinhos. Mas as que começam sua carreira artística precocemente na TV me dão nos nervos. Por serem fabricadas por adultos que as utilizam somente com intuito de ganhar dinheiro e assim, interrompendo a infância normal desta criatura que certamente crescerá e provavelmente se tornará um adolescente problemático. Exemplos disso são Ashley e Mary Kate Olsen e Macaulay Culkin.
Mas no último domingo aconteceu a coisa mais ridícula que eu já vi na TV brasileira em relação a esses astros infantis.
Eu não suporto a Maísa. Mas quem acompanhou o programa vespertino que ela faz ao lado do Silvio Santos e tem o mínimo de compaixão pela existência alheia também deve ter achado repugnante o que aconteceu. Eu particularmente não assisto nem TV no domingo. Mas como estava com a minha avó que é telespectadora fiel da programação do SBT acabei vendo. Aquilo ali foi uma agressão gratuita.
Pra quem pegou o bonde andando, esta criança se feriu ao bater a cabeça no suporte de uma câmera. A produção do programa em vez de procurar retirar a menina do palco e lhe prestar o devido socorro para avaliar se ela não tinha ferimentos, simplesmente a manteve no ar, sob choros, gritos e lágrimas da menor e as gargalhadas fervorosas da platéia, do apresentador e da equipe do programa.
Se não me falha a memória, ela não deve sequer contar mais do que 7 anos de idade. O que de acordo com as nossas leis que originam o ECA (Estatuto da Criança e Adolescente) menor não pode nem trabalhar. E a situação se complica ainda mais porque ela foi exposta em cadeia nacional quando chorava pedindo por ajuda.
E se fala em uma mídia que respeita a sociedade? É esse tipo de respeito que nos ofertam?
Reitero que eu não gosto dela, mas mesmo assim, saio em favor do ser indefeso ali naquele circo dos horrores e pensei que se fosse minha filha, não havia contrato milionário ou fama no mundo que viesse a compensar o desrespeito a que ela foi submetida.
Devemos pensar mais a respeito da relação entre a mídia e a violência. Há que se tomar medidas mais enérgicas que proíbam que toda essa carnificina nos seja enfiada goela abaixo. Mal ligamos a televisão ou lemos o jornal de manhã cedo e já nos deparamos com a violência escancarada a nossa frente. Chega a ser indigesto ver isso durante o café da manhã.

É isso que eu penso sobre a violência. Não é só colocar mais policias na rua, construir mais cadeias, reformar o Código Penal e nem só melhorar a educação. É um conjunto de políticas públicas que vão além dessas mudanças. Há que se mudar também a educação jornalística de hoje. Nada contra jornalistas, até porque tenho uma grande amiga, jornalista, blogueira e mãe exemplar, Mari Camata (http://alamaryjanne.blogspot.com) que manda muito bem no seu trabalho sem precisar apelar para o sensacionalismo.

Agora, bem que isso podia prestar pro meu Projeto, mas deixa pra lá. Pelo menos desabafei como jovem, como feminista, como advogada e sobretudo como ser humano.

domingo, 5 de abril de 2009

Fly, butterfly...

05:15h da manhã. Geralmente durmo a essa hora todos os dias. Olhei pro lado, vi que ela dormia profundamente. Era hora de sair dali antes de fazer mais besteiras.

Eu já tinha feito a minha parte. Agora ao acordar ela não choraria na minha frente. Já que ela nunca se sentiu confortável em fazer isso.


Sempre fui um cara meio complicado. As vezes eu queria, as vezes eu não queria.

Mas não dava pra prever. Nunca dava. Nem eu me previa. Mas ela sempre preveu...


Tinha tempos que eu não a via. Mas essa última semana, a saudade bateu. De uma forma inexplicável. Era uma saudade urgente. Eu precisava vê-la, conversar, beijar aquela boca que eu tava tão acostumado a beijar. E tentar consertar o meu erro.

Liguei pra ela numa quarta-feira. Tava assistindo um filme que ela adora. Liguei como quem não quer nada. Mas eu queria. Queria ela.


- Oi.

- E aí menina, como você tá? Te atrapalho ou podes falar?

- Não, tô só lendo umas coisas aqui de um processo. Trabalho.

- Sempre o trabalho, né?

- Dizem que ele dignifica o homem...

- Mas também cansa!


Ela riu. Eu adorava ver e ouvir esse riso. Nenhuma mulher tem um sorriso igual. É incrível.


- Eu tava assistindo O Melhor amigo da noiva. Lembrei de ti.

- Eu já vi esse filme 9 vezes!

- Não eram 5?

- Bom, a gente não se fala a algum tempo. Algumas coisas mudaram.

- Como o teu cabelo, né? Eu vi um dia desses que ele tá mais claro.

- Andou fuçando as fotos do meu orkut?

- Te vi atravessando a rua perto do parque.

- E porque não me chamou?

- Estavas acompanhada de um cara. Entrando no carro com ele. Não quis atrapalhar.

- Que isso! Era só um amigo do escritório.

- Não disse o que ele era, não precisa se justificar. Eu não tô tentando controlar tua vida.

- E e-eu também não disse que.. que estavas...


Eu senti um certo nervosismo na voz dela. Quando a gente namorava isso me deixava tranqüilo. Era sinal de que eu comandava a situação. Agora me apavora. Ela tem razão, não foi só o cabelo que mudou. Mudou o corpo, a voz, as atitudes. Ela mudou. Ela foi. Eu fiquei. Me sinto um nada quando eu percebo isso. Esse nervosismo, ela gagueja. Mas gagueja não porque ela tá nervosa em falar comigo sobre a vida dela. Mas porque ela quer esconder a verdade. Que ela tá melhor sem mim.

Nunca quis controlar sua vida. Mas fazia isso involuntariamente. A pressionei a continuar a faculdade que ela não gostava. Coagi a não jogar tudo por alto por causa do seu maior sonho. Eu fiz ela pintar o cabelo da cor que eu gostava e gostar das coisas que eu gostava. Ela não fez viagens por minha causa, nem novos amigos. Aliás, ela desfez algumas antigas amizades por minha culpa. Eu a fiz ser um clone meu. E ela foi. Mas o tempo passou e aquilo me cansou. Ela era muito eu. Eu precisava que ela fosse ela.


- Me desculpa. Olha... Eu só liguei porque pensei que a gente podia sair qualquer dia desses. Colocar o papo em dia...

- Não sei, eu ando muito cheia de trabalho e de estudo da pós. O escritório tá mais cheio de clientes a cada dia. Quase não tenho tempo livre!

- Que legal, amor...

- Oi?

- Digo, que legal, Anne! O escritório fazendo sucesso...

- Pois é...


Droga. Ela percebeu que eu tô tentando me aproximar. Maldito hábito. Ela costumava ser o meu amor. E eu era o amor dela. E agora? O que somos um para o outro?


- E então? Podemos jantar qualquer dia desses?

- Vou ver um dia livre, porque realmente ando muito atarefada.

- Qual é, Anne. É só um tempo pra um velho amigo!

- Tu não és meu amigo, e sabes disso.

- Ok, então um velho conhecido.

- Tudo bem. Acho que pode ser sexta, então. 20h?

- Por mim tá ótimo!

- Onde?

- Que tal comermos sushi? Tu adoras sushi...

- Tá. Tudo bem...


Na quarta mal dormi. Depois de desligar o telefone, abri a gaveta e tirei de dentro de uma caixa uma blusa dela. Ela nem lembra que essa blusa tá aqui. Guardei depois que a gente terminou. Pensei em jogar fora, devolver, mas deixei lá. O perfume dela também ficou aqui. Meio vidro. As vezes eu borrifo ele sobre um travesseiro e chego até a sonhar com ela. Na caixa eu também guardei um par de brincos que tinha dado de presente de namorados e que ela devolveu dizendo que por serem caros eu podia dar pra outra, um monte de bilhetes com declarações de amor que ela deixava na minha mesa, fotos nossas, e um chaveiro de uma girafa de pelúcia. Tudo isso me lembrava ela. Só ela. Era o único pedaço dela que ainda me fazia acessível. Porque quando ela partiu da minha vida, levou também o pedaço do seu coração que eu achava que tinha. E devolveu o pedaço do meu. Preferia que ela tivesse devolvido só os brincos.

Na quinta, não conseguia nem trabalhar direito. Ficava olhando a foto dela no meu celular. Só tínhamos 3 fotos nos beijando. Ela dizia que não fazia caso. Só tiramos essas porque em uma eu tirei de surpresa e nas outras duas, eu insisti muito.


Enfim, chegou a sexta.

Liguei mais cedo perguntando se poderia ir buscá-la em casa. Depois de muito insistir, ela aceitou. Cheguei as 20:25h. Liguei avisando que estava esperando na frente do prédio.

Ela desceu já reclamando do atraso e dizendo que eu não perdia o velho costume de me atrasar.

E tinha razão. Não eram só aqueles 25 minutos que eu me atrasei. Me atrasei os 5 anos que a gente passou junto. Me atrasei muito.


Fomos a um restaurante que sempre gostamos. Serviam um sushi que ela adorava e que eu aprendi a gostar.

O jantar foi bom, ela me contou casos engraçados e bizarros que aconteciam nas suas audiências. Me falou sobre os planos de prestar concursos, de cursar novos idiomas. Falou que terminava a pós em dois meses, que tinha se formado no espanhol e havia começado o francês e o italiano. Senti uma frustração que nem quis dizer que abandonei o inglês. Nós dois rindo como dois bons amigos.

Mas eu não conseguia parar de pensar em beijar aquela boca com batom vermelho. Aliás, porque ela usa batom vermelho agora? E que maquiagem escura é essa? Pelo que eu me lembre ela sempre usou maquiagem clara. E batom nem pensar. Só brilho labial.

Como ela tá linda. Tá sexy. Quando a gente namorava eu nunca gostei que ela parecesse sexy pra ninguém.

E esse vestido roxo e tomara-que-caia? Ela sempre usou vestido de mangas.

Argolas douradas? Desde quando ela usa argolas?

E porque o cabelo dela tá solto? Ela sempre prendia o cabelo. E pior que tá lindo, natural desse jeito. Ela não pinta nem faz mais chapinha! Como essa mulher pode ter mudado tanto em um ano? E quando foi que ela começou a usar salto alto? Até onde eu sabia, ela não se incomodava em ser baixinha. A única coisa que não mudou foi o perfume. Só isso.

Deus do céu, ela tá me assustando com tanta mudança. Se eu sair correndo agora ainda dá tempo de dizer que tava tendo uma crise alérgica ao camarão.

Entre o 5º ou 6º saquê eu pedi a conta que ela não discutiu sobre rachar ou sobre quem deveria pagar. Ela nunca deixava eu pagar a conta inteira e eu sempre pedia pra fazer isso. Mas ela nem falou nada agora.

Perguntei se ela queria ver o luar no pier. Ela aceitou. Sempre fazíamos isso.


Tinha pensado em fazer uma noite diferente. Mas tive medo. Depois de vê-la tão mudada resolvi não revolucionar muito. Tinha que reconhecer alguma coisa nossa já que eu não reconhecia quase mais nada.

Ela não usava mais lente. Mas mesmo assim a lua refletiu nos seus olhos. E eu pude enxergar por um momento, em algum lugar ali, a minha menina, mesmo que num corpo de mulher.

Não consegui evitar e lhe roubei um beijo. Ela ficou furiosa e tentou me afastar. Mas eu não podia deixar aquele desejo pra lá. Então eu a beijei com toda a vontade que eu fiquei acumulando nos últimos meses.

Ela disse que eu não podia fazer aquilo. Que quando enfim ela tava conseguindo colar os caquinhos do seu coração eu não tinha o direito de estragar tudo, confundido a cabeça dela. E não tinha.

Depois de muita conversa, ela não relutou mais. E aceitou sem protesto mais um beijo.

Saímos dali e dormimos juntos no apartamento dela.

Ela estava tão linda, tão maravilhosa e tão perfeita que eu prendi o choro quando ela me abraçou pra dormir. E essa noite eu não dormi.

Fiquei olhando seus olhos cerrados e sua expressão de quem sonhava tão serenamente.


Antes das seis, eu me levantei com cuidado pra não acordá-la. Tomei banho, me vesti, e saí.

Na cabeceira da sua cama, deixei um bilhete: "Perdão. Você sempre foi o amor da minha vida. Mas não podemos mais ficar juntos. Porque você tem um mundo todo pra conquistar e eu não consigo nem sair do meu lugar pra te acompanhar. Te amo pra sempre. Espero que seja muito feliz com alguém que realmente te mereça."


Eu simplesmente não podia estragar a vida dela de novo. Deixei a minha borboletinha voar sozinha. Livre pra encantar outros jardins.